TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

247 acórdão n.º 134/20 em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui, mas isso seria ainda justificável pelo facto de à conduta típica ser inerente um perigo abstrato de lesão desse bem jurídico: a «normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social». VIII - Contudo, o entendimento aqui acolhido é o de que nem mesmo entendido nesses termos este tipo legal de crime deixa de expor-se a um juízo de inconstitucionalidade; em primeiro lugar pode ques- tionar-se a solidez daquela premissa, bem como a necessidade de recurso à via da criminalização no confronto com outras medidas aptas a alcançar o mesmo objetivo com menor restrição de direitos fundamentais, designadamente a pura descriminalização do lenocínio e a regulamentação da pros- tituição; por outro lado, a configuração de uma norma como crime de perigo abstrato traz consigo particulares exigências no plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta proibida; é crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especialmente precisa. IX - Relativamente à norma em apreço, até poderia considerar-se que a mesma satisfaz ambas as exigên- cias: quanto à primeira, embora o bem jurídico pretensamente tutelado não seja absolutamente con- sensual, é de conceder que existem elementos suficientes para se concluir estar em causa a liberdade sexual; quanto à segunda, embora o tipo legal faça uso de elementos subjetivos e normativos, é relati- vamente indiscutível o seu âmbito de incidência; o que falha redondamente na norma é o facto de dela não emergir uma possibilidade de conjugação suficientemente robusta entre a primeira e a segunda exigências; o perigo pressuposto por este tipo legal de crime não é verdadeiramente o perigo de lesão da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de exploração de uma situação de especial vulnerabilidade em que a mesma se encontra, ou seja, o perigo de verificação do elemento típico que o legislador retirou do tipo legal. X - O facto é que essa exploração não faz parte do tipo legal e está já, portanto, ela própria, a ser pressu- posta; a única linha de entendimento capaz de ainda relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos ( sc. , aquela segundo a qual ele constitui um crime de perigo abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última análise, num perigo de verificação de um elemento que não consta desse tipo legal de crime ( sc. , a exploração de uma situação de vulnerabilida- de dessas pessoas). XI - Assim interpretado, o tipo legal de crime envolve duas presunções, uma das quais, além de frágil, se suporta ainda na outra, podendo neste sentido dizer-se estarmos perante um crime de perigo dupla- mente abstrato, um crime de perigo abstrato elevado ao quadrado, em que: (i) a base é a presunção de que a exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual; e (ii) o expoente é a presunção de que a conduta de quem, profis- sionalmente ou com intuito lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encerra tipicamente um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui; em resultado desse processo de exponenciação, o âmbito da proibição é muito mais extenso do que aquele que, considerado o bem jurídico que se procura tutelar, seria o seu âmbito natural e entre este âmbi- to natural e aquele âmbito exponenciado está um conjunto indiferenciado de condutas que decerto incluirá situações em que há perigo concreto de lesão ou até dano do bem jurídico, mas isto constituirá

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