TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

121 acórdão n.º 60/20 71.ª No campo dos direitos sociais, justifica-se plenamente o apelo a esse direito fundador nos casos que confi- guram exclusões sociais e/ou degradação significativa das condições de vida dos trabalhadores resultante da redução inesperada e drástica do seu meio de subsistência e das condições de vida e de trabalho em geral. 72.ª Assim, e como decorrência de todo este acervo normativo que se vem de referir e analisar, forçoso se torna concluir que o art. 75.º da Lei nº 83-C/2013, de 31/12, ao proibir o pagamento dos complementos de reforma apenas aos trabalhadores das empresas do sector público empresarial, manifestamente violou também o princípio da igualdade, em ambas as vertentes, e o princípio da proibição da discriminação. Com efeito, 73.ª A violação do princípio da igualdade verifica-se não só perante a lei mas também e sobretudo no que concerne à dignidade social dos trabalhadores. 74.ª Por isso, uma redução do meio de subsistência de quem trabalha ou já trabalhou uma vida inteira, e que se assume como diminuição de salários e/ou o congelamento de acréscimos retributivos ou complementos de pen- sões, sem que seja declarado o estado de sítio ou o estado de emergência constitui uma flagrante violação daquele princípio elementar de tratamento igualitário, e, mais do que isso, ofende o princípio da dignidade social e humana dos trabalhadores. 75.ª É que a redução de salários, tal como da prestação retributiva para os trabalhadores na pré- reforma e com- plemento da pensão de reforma para os reformados, na medida em que coloca em risco o nível de vida e os compro- missos de ordem financeira assumidos pelos trabalhadores e respectiva família anteriormente a essa redução, viola, e viola gravemente, a garantia a uma existência condigna através da retribuição prevista no n.º 1, al. a) do artigo 59.º da CRP, e que é aplicável a todo o tipo de contrapartidas, simultâneas ou subsequentes, da prestação de trabalho. 76.ª As restrições aos direitos sociais mais elementares dos trabalhadores impostas pelo Estado Português aos AA. como ex-trabalhadores do sector público empresarial, sendo que a sustentabilidade das finanças públicas pros- seguida pelos orçamentos do Estado é um assunto da responsabilidade de todos os cidadãos, configura ainda uma discriminação em razão do vínculo laboral e que, por não ser previsível nem expectável pelos visados, é manifesta- mente contrária ao direito a uma existência condigna prevista no artigo 59.º, n.º 1, al. a) da CRP. 77.ª E a natureza imperativa do regime que decorre do referido artigo 75.º da LOE, no sentido de que pre- valece sobre quaisquer outras normas legais ou convencionais em contrário, viola, e de forma óbvia, a autonomia colectiva consagrada no artigo 56.º da CRP já que neutralizou os resultados da negociação colectiva previstos nos instrumentos de regulamentação colectiva. 78.ª O art. 75.º da LOE é assim, e por todas estas razões – que, como se vê, extravasam por completo as temá- ticas e as questões aludidas, analisadas e decididas pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 413/14 – múltipla e materialmente inconstitucional e violador de normas de direito internacional de valor de Constituição material e, logo, hierarquicamente superior. 79.ª Sustentar que não houve violação do princípio da confiança no caso dos AA. porquanto quem teria for- malizado a obrigação do pagamento dos complementos de reforma teriam sido as administrações das empresas do sector público empresarial e quem agora decidiu o não pagamento de tais complementos era o Estado, para além de representar a completa, absurda e intolerável hipervalorização da formalidade sobre a materialidade, configura mesmo uma arrepiante e constitucionalmente inadmissível insensibilidade face à protecção da dignidade da pessoa humana e aos princípios fundamentais de um Estado de direito. 80.ª Não é de todo verdade que os complementos não tenham natureza retributiva, não só no sentido de cons- tituírem, ou não, salários, mas sim e sobretudo no de serem uma contrapartida de uma vida inteira de trabalho e de consubstanciarem o (único) meio de subsistência de quem assim, tal como os AA., trabalhou. 81.ª E, mais, aquilo que foi livre e formalmente convencionado no âmbito de um negócio jurídico livre e efi- cazmente celebrado entre as partes dos contratos de trabalho dos AA. não foi uma liberalidade, uma facilidade ou um “benefício, mas sim um direito. 82.ª Acresce que nem está demonstrada a existência de um verdadeiro interesse público na solução consagrada nem muito menos que os respectivos pressupostos se ajustem à realidade, dimensão e, mesmo, brutalidade da medida.

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