TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
120 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL unilaterais e substanciais no seu rendimento anual, chegando mesmo a 60% e colocando em risco o nível de vida e os compromissos de ordem financeira oportunamente assumidos pelos trabalhadores e respectivas famílias. 58.ª Não se trata aqui sequer de uma mera questão sobre remuneração stricto sensu , ou seja, sobre o quantum remuneratório, matéria sobre a qual é vedada qualquer intervenção da União, mas sobre condições de trabalho e de vida alteradas unilateralmente pelo Estado num aspecto primordial para os cidadãos trabalhadores e respectiva família, que é o exacto rendimento proveniente directa ou indirectamente da sua actividade profissional, presente ou passado, e com base na qual garantem a sua subsistência. 59.ª Por outro lado, a referida Lei do Orçamento de Estado para 2014, em especial no citado art. 75.º, ao estabelecer que o regime de suspensão do pagamento dos mencionados complementos de reforma é imposto contra instrumentos de regulamentação colectiva de natureza convencional, prevalecendo sobre os mesmos, é claramente contrária ao direito de negociação colectiva previsto no artigo 28.º da Carta e interligado com o art. 56.º, n.º 3 da CRP. 60.ª Importará verificar ainda se, face à Constituição da República Portuguesa, a unilateral redução do meio de subsistência imposta aos AA. como ex-trabalhadores de uma Empresa do sector público e para mais com pres- supostos referentes a factos que a eles são inteiramente estranhos, e com projecção para o futuro (como já teve em 2015 e continua a ter em 2016), está em conformidade com os direitos fundamentais nessa sede consagrados. Ora, 61.ª A retribuição ou a pensão, ou o complemento da pensão do trabalhador não configura apenas uma medida de natureza puramente económico-financeira com a qual se possa “jogar” livremente no quadro de uma política económica, mesmo em situação de crise grave de sustentabilidade das finanças públicas do Estado. 62.ª E para responder à questão essencial acima colocada é antes de mais relevante ter presente o disposto no 1.º da CRP, o qual estabelece que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Por outro lado, 63.ª E no capítulo dos Direitos e Deveres Fundamentais, o art. 13.º, n.º 1 da CRP consagra o princípio da igualdade dos cidadãos em duas vertentes: em face da lei e na sua dignidade social. Ora, 64.ª Este preceito constitucional, por respeitar aos “direitos, liberdades e garantias”, é directamente aplicável e vincula as entidades públicas e privadas – v. Art. 18.º, n.º 1 da CRP. 65.ª E a lei só pode restringir esses direitos nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – n.º 2 do art.º 18.º 66.ª Trata-se, assim, de um princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito Democrático, corres- pondente ao princípio geral de Direito que está inscrito em todas as constituições europeias, e consagrado também no art. 7.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, igualmente vigente na Ordem Jurídica interna portu- guesa, e com carácter de Constituição material e, logo, de grau hierárquico superior ao das leis ordinárias internas, designadamente as leis do Orçamento do Estado, por exemplo a LOE-2014. 67.ª Na Carta Social Europeia, as Partes subscritoras reconheceram como objectivo de uma política que prosse- guirão por todos os meios úteis, nos planos nacional e internacional, a realização de condições próprias a assegurar o exercício efectivo de todo um conjunto de direitos e princípios. 68.ª Os direitos fundamentais consagrados na Carta Social Europeia e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores devem, segundo o art. 151.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, ser atendidos pela União e Estados-Membros na prossecução dos objectivos da política social. 69.ª Neste sistema multinível em que na Ordem Jurídica portuguesa se integra, existe consenso no que respeita ao facto de a remuneração ou prestação de reforma ou complemento desta não se cingir ao mero aspecto econó- mico, na medida em que elas estão estritamente ligadas ao bem estar do trabalhador e da sua família, numa palavra, a uma existência digna! 70.ª O “Princípio da Dignidade Humana”, em que, nos termos do já citado art. 1.º da CRP, a República Por- tuguesa se baseia tem de ser perspectivado, na sociedade actual, de uma forma inovadora, deixando de fazer sentido a sua invocação tão só em casos-limite.
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