TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

102 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL efeito, suscitadas dúvidas sobre o exato sentido e alcance de certa lei, o órgão que a editou, como é lógico, tem competência para a interpretar através de uma nova lei. A lei interpretativa nasce assim da necessidade de que o próprio órgão que promulgou uma lei obscura preste esclarecimento sobre o sentido normativo correto que lhe pretendeu dar. Por isso mesmo, a lei interpretativa material ou «por natureza» destina-se, não a criar direito novo, mas apenas a esclarecer e determinar o sentido de leis anteriores obscuras, ambíguas, contro- vertidas e de interpretação duvidosa. Trata-se, portanto, da chamada interpretação autêntica, que provém do mesmo poder legislativo, com índole e eficácia normativas equiparáveis à lei interpretada e que tem, por isso, a força vinculante própria da lei. Uma lei interpretativa por «natureza» implica duas consequências características: (i) a fixação obrigatória de um certo sentido à lei interpretada com exclusão de outros possíveis; (ii) a sua eficácia retrotrai-se à data da entrada em vigor da lei interpretada. O caráter prescritivo e obrigatório da norma interpretativa não difere da força vinculativa inerente à norma inovadora de natureza imperativa: quer vise interpretar e esclarecer uma disposição anterior quer introduza uma nova disciplina, o legislador impõe sempre um determinado sentido normativo; já quanto à eficácia normativa de cada espécie de normas jurídicas há uma diferença assinalável: enquanto a norma inovadora se aplica para o futuro, quando não seja expressamente retroativa, a norma interpretada aplica-se como se, no momento da verificação dos factos passados, tivesse já o alcance que lhe fixou a norma interpretativa. Portanto, não há qualquer dúvida que as normas interpretativas produzem efeitos retroativos. O pre- ceito interpretativo confunde-se com o preceito interpretado, de que fica fazendo parte integrante, formando os dois, desde a origem ( ex tunc ), um todo único (artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil), e por isso, a entrada em vigor do sentido normativo imposto pela lei interpretativa ocorre com a entrada em vigor da lei inter- pretada. Trata-se, pois, como se refere no Acórdão n.º 395/17, «de uma ficção temporal – a ficção de que um facto presente (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada). A retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção».  Porém, o sentido preciso da “retroatividade” que resulta dessa ficção pode ser diferente consoante a intenção que determinou a intervenção do legislador. Se o legislador exerce abusivamente o seu legislativo poder de interpretação para impor formalmente um sentido jurídico que a lei interpretada não poderia comportar, falta à lei uma intenção interpretativa propria- mente dita. A lei, aparentemente interpretativa, é na realidade materialmente inovadora, já que representa uma nova e diferente valoração jurídica dos factos regulados pela lei supostamente interpretada. As conse- quências jurídicas que uma lei desse tipo determina são sempre produto de nova valoração legal de factos pas- sados enquanto factos constitutivos de um determinado efeito ou situação jurídica. Por isso, ao ligar a factos passados efeitos que estes eram insuscetíveis de produzir segundo a lei interpretada, a lei formalmente inter- pretativa tem caráter substancialmente retroativo. O que o legislador pretendeu foi apenas dar-lhe o âmbito de aplicação que é reconhecido às leis interpretativas materiais ou por «natureza». Nestes casos excecionais, escreve J. Batista Machado, que «a declaração, feita pelo legislador, de que certa lei tem caráter interpretativo equivale, então, a uma cláusula de retroatividade» ( ob. cit. p. 286). Assim, se o legislador, forçando a reali- dade, der a qualificação de interpretativa a uma lei que não tem esse caráter, os tribunais não podem deixar de a considerar substancialmente retroativa, porque tal qualificação equivale a dar à lei efeito retroativo e isso está dentro dos poderes do legislativo. Não é esse, no entanto, o sentido da “retroatividade” das leis materialmente interpretativas. A função da lei genuinamente interpretativa é determinar o sentido e o alcance de uma lei anterior cuja aplicação não seja uniforme. Por isso mesmo, o sentido interpretativo que ela revela já está virtualmente contido no espírito da lei interpretada, não implicando a sua determinação qualquer apreciação e valoração ex novo dos factos e situações regidas pela lei interpretada, mas apenas clarificação e esclarecimento do sentido que o legislador atribui às suas próprias palavras, precisando o respetivo conteúdo. Não pode, portanto, falar-se em verdadeira retroatividade ou retroatividade proprio sensu , pois, como diz o referido autor, «a aplicação da

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