TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
97 acórdão n.º 464/19 verificação mais ou menos improvável, sem qualquer referência de circunstâncias de facto, caso em que é impossível evitar o arbítrio. É evidente que o Estado, para salvaguarda de valores sociais inquestionáveis, como a segurança pública ou o perigo público de ações terroristas, pode e deve tomar medidas preventivas. E foi com esse objetivo que a LSI criou a Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT), na dependência do Secretário-Geral de Sistema de Segurança Interna, composto pelos representantes de vários serviços, entre os quais o Secretário-Geral do SIRP e dos diretores do SIED e do SIS, cuja função principal é a «coordenação e partilha de informações, no âmbito do combate ao terrorismo», que foi posta em funcio- namento pelo Decreto Regulamentar n.º 2/2016, de 23 de agosto. Porém, a ação deste serviço e das polícias que o integram move-se sobretudo no campo avançado da antecipação, avaliação e gestão de riscos do ter- rorismo, um domínio em que, devido à incerteza que encerra, é excessivo restringir o direito fundamental à autodeterminação informativa. No juízo de proporcionalidade sobre as medidas restritivas tem que ser equacionado o risco de, sob a capa da luta contra o terrorismo e a espionagem, os cidadãos serem reduzidos a identidades digitalmente criadas e heteroconstruídas, baseadas em perfis definidos por terceiros, com a consequente desumanização das pessoas e estandardização dos seus comportamentos, aniquilando-se a privacidade e condicionando-se a liberdade, assim acabando por perverter a democracia. O desvalor do sacrifício imposto à liberdade dos cidadãos assume aqui um especial peso na análise da relação meio-fim inerente ao teste da proporcionalidade Entende-se, pois, que a ação de prevenção prevista no artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto, tal como articulada com as condições de admissibilidade previstas no artigo 6.º do mesmo diploma e tendo em conta a insuficiência dos meios de reação dos cidadãos contra intervenções ilícitas, desequilibra desrazoavelmente a ponderação de meio-fim ínsita na vertente apontada do princípio da proporcionalidade, violando o direito à autodeterminação informativa, consagrado nos artigos 26.º, n.º 1 e 35.º, n. os 1 e 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, da CRP. 12. A questão da constitucionalidade do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2017 Como já foi dito e se repete, não se aplicando o artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, ao domínio coberto por aquele artigo 3.º, a constitucionalidade desta norma deve ser apreciada com base nos artigos 26.º, n.º 1 (direito ao desenvolvimento da personalidade e à reserva de intimidade da vida privada) e 35.º, n. os 1 e 4 (proibição de acesso a dados pessoais) da Constituição. Os dados a que a norma do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2017 permite acesso são «dados pessoais de terceiros», para efeitos do artigo 35.º, n.º 4, da Constitui ção, abrangidos, portanto, por um princípio de proibição do acesso, em que sobressai sobretudo a vertente negativa de defesa perante o Estado. O direito à autodeterminação informativa abrange uma proteção mais ampla do que a simples reserva da vida privada, incluindo os dados pessoais dos indivíduos, ainda que autonomizados de concretos atos de comunicação, cuja possibilidade de devassa aumenta exponencialmente com o progresso tecnológico, e que refletem, por exemplo, os hábitos de vida de um indivíduo, os locais que frequenta, os seus gostos, a sua saúde, a forma como passa os tempos livres, a conduta e as características do utilizador ou até traços funda- mentais da sua personalidade. O acesso pelos SIRP a dados dessa natureza condiciona a autodeterminação informativa dos cidadãos a que esses dados digam respeito – uma das refrações da tutela constitucional do livre desenvolvimento da personalidade – e constitui uma ameaça de invasão da privacidade dos visados. Conforme se afirma no ponto 13 do Acórdão n.º 403/15, o direito à autodeterminação informativa consagrado no artigo 35.º da Constituição, com vista à proteção das pessoas perante o tratamento de dados pessoais informatizados, não se reporta, como o direito à autodeterminação comunicativa, a comunicações individuais efetivamente realizadas ou tentadas, estas já protegidas pelo sigilo de comunicações. «Naquele outro direito protege-se as informações pessoais recolhidas e tratadas por entidades públicas e privadas, cuja forma de tratamento e divulgação pode propiciar ofensas à privacidade das pessoas a que digam respeito. (…)
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=