TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

94 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL uma infração determinada» (n.º 3 do artigo 8.º da anterior Lei n.º 67/98, de 26 de outubro – LPDP); e a conservação e transmissão de dados têm por «finalidade exclusiva a investigação deteção e repressão de crimes graves» (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho). De um modo geral, pode afirmar-se que a “concordância prática” entre os valores constitucionais de perseguição e punição do crime com os direitos fundamentais deve ser feita em sede de processo penal. Qualquer ação preventiva que interfira, no sentido de os comprimir ou devassar, com direitos, liberdades e garantias, não pode ter lugar fora de um processo criminal devidamente formalizado, porque «é evidente que uma atuação investigatória processualizada e publicizada, na forma de inquérito preliminar ou de instrução, não só salvaguarda a liberdade e segurança no decurso do processo como dá garantia de que a prova para ele canalizada foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais. A mesma conclusão não se pode extrair de uma ação de prevenção não processualizada ou mesmo não suficientemente formalizada, coberta pelo segredo de Estado, que decorre na total ausência de instrumentos defensivos que comportem um mínimo de dialética processual» (Acórdão n.º 403/15, ponto 19). 11.2.4. Simplesmente, a norma do artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, enquadrada no respetivo regime jurídico, afasta-se claramente deste paradigma. A necessidade do acesso aos dados de tráfego funda-se em dois pressupostos alternativos, mencionados no artigo 6.º: (i) obtenção de informação de um alvo ou um intermediário determinado; (ii) impossibilidade ou dificuldade em obter a informação por outra forma ou em tempo útil para responder a uma situação de urgência. A ação preventiva modela-se assim por uma abertura de conceitos (“alvo determinado”, “situação de urgência”, “muito difícil de obter”, “tempo útil”), semanticamente maleáveis e insuficientemente deter- minados, no âmbito dos quais a incerteza sobre os pressupostos de acesso aos dados de tráfego é bastante grande, atendendo à singularidade de cada caso concreto. Com efeito, a intromissão nesta categoria de dados depende unicamente da existência de um alvo deter- minado e da impossibilidade ou dificuldade de em tempo curto obter informações através de meios abertos. O apuramento de um «alvo» ou a avaliação de uma «situação de urgência» depende da existência material de pressupostos de facto totalmente escolhidos pelos serviços de informação e do juízo valorativo que sobre eles faça. O mesmo se passa, aliás, com a própria conexão da informação visada pelo pedido de acesso (seja sobre o “alvo” ou outra informação não especificada) e a prevenção de atos de espionagem ou de terrorismo: os factos que suportam tal pedido, as finalidades que o fundamentam e as razões que aconselham o mesmo acesso são aqueles que os serviços entenderem dever indicar no pedido de autorização [cfr. o artigo 9.º, n.º 2, alínea b) , da Lei Orgânica n.º 4/2017]. Consequentemente, a relevância dos fundamentos do pedido, que, enquanto fator de ponderação da decisão dos juízes, limita a salvaguarda dos direitos fundamentais concretamente em causa (cfr. o artigo 5.º, n.º 1, do mesmo diploma), também só pode ser apreciada em função do que os próprios serviços enunciarem no pedido que apresentem. Deste modo, qualquer cidadão pode ser potencialmente referenciado como alvo, assim como qualquer situação poderá ser configurada como urgente. Tudo depende do juízo de prognose ou da avaliação que os serviços de informação façam da situação concreta vivida. Na definição do cidadão alvo da medida, a lei não indica critérios objetivos para a seleção, relaciona- dos com a probabilidade de as pessoas visadas estarem envolvidas direta ou indiretamente na preparação ou execução de ataques terroristas, ou uma relação, pelo menos indireta, com atos de criminalidade grave, nomeadamente a espionagem, não passando a norma, também neste ponto, o teste da proporcionalidade, por falta de densificação do regime jurídico que lhe serve de pressuposto. Ora, tendo em conta que o fenómeno da prevenção se basta com uma suspeita, que pode ser vaga, em relação ao indivíduo a cujos dados pessoais se pretende obter acesso, podendo ser suficiente, para fundar tal acesso, uma relação meramente aparente, espacial ou circunstancial (critério geográfico), com pessoas suspeitas ou a sua presença em locais ou contextos normalmente associados a atentados terroristas (aero- portos, viagens em determinados países estrangeiros), tem de se reconhecer que os poderes que a lei confere

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