TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
93 acórdão n.º 464/19 da prevenção ou no da investigação, não são – ou podem não ser – as mesmas. O critério formal e tradicio- nal de distinção entre prevenção e investigação, assente no tempo de intervenção das autoridades, perde os seus contornos claros. Os meios ocultos de investigação, mesmo quando partem do processo penal, podem descobrir “crimes” possíveis ou prováveis ou perigos suscetíveis de vir a atualizar-se. Uma prevenção criminal positiva ou pró-ativa, como aquela que o Estado pretende para combater as novas formas de criminalidade organizada, não espera pela prática do crime para começar a investigar e recolher provas. Daí que, em certos casos, a colheita de informação mesmo antes de surgir o fumus commissi delicti , para ser valorada num futuro processo penal, possa consubstanciar uma “investigação de campo avançado”, ou de um tertium genus ou terceira tarefa da polícia, materialmente elevada ao estatuto de investigação própria do processo penal (cfr. Costa Andrade, ob. cit. , Bruscamente no verão passado, a reforma do Código de Processo Penal , p. 324). Seja como for, a verdade é que o procedimento de recolha de informações através de dados de tráfego, previsto no questionado artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, não está orientado para uma atividade investigatória de crimes praticados, nem visa reunir «provas» do planeamento de crimes organizados de ter- rorismo. Nos termos em que o acesso aos dados de tráfego está regulado no diploma, com os pressupostos previstos no seu artigo 6.º, não se trata de finalidade de investigação criminal, mas apenas de acumulação funcional de informação por razões preventivas, ou seja, uma atividade exclusivamente inserida na função preventiva. Ora, o princípio da proporcionalidade preceitua que este poder do Estado, no acesso a dados pessoais dos cidadãos, além de exigir um fundamento, preciso e determinado, na lei – princípio da determinabilidade –, não pode ser utilizado para além do estritamente necessário. Não basta que tenha um conteúdo sufici- entemente definido na lei, impõe-se ainda que obedeça aos requisitos da necessidade, exigibilidade e propor- cionalidade (ou proibição do excesso). Com efeito, decorre do artigo 272.º da Constituição a preocupação de limitar e vincular as medidas policiais restritivas dos direitos fundamentais, as quais «só serão legítimas se idóneas (próprias para a eliminação de perigo), necessárias (necessidade de eliminar um perigo grave e atual de «desordem»), proporcionais (proporção entre o sacrifício dos direitos e o resultado), tempestivas e de duração limitada ao perigo» (cfr. Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 , 5.ª edição, p. 333). As ações de prevenção da polícia devem traduzir-se, assim, em medidas de defesa contra perigos concre- tos. Com efeito, a probabilidade/previsibilidade de ocorrência de situações potencialmente lesivas para bens jurídicos cuja proteção se encontra a cargo do Estado reclama medidas necessárias para as evitar – negar tal afirmação significa exonerar as autoridades estaduais de uma das suas tarefas primordiais: garantir a segu- rança de pessoas e bens. Por isso, as medidas preventivas pressupõem habilitações legais de ingerência contra situações de perigo, entendido no sentido de «ameaça objetiva de lesão imediata de bens jurídicos por con- dutas individuais ilegais particularmente suscetíveis de a gerar numa situação concreta» (Sérvulo Correia, O Direito de Manifestação – Âmbito de Proteção e Restrições, Coimbra, 2006, p. 98). Deve notar-se, contudo, que, como os serviços de informação não são órgãos policiais, revestindo-se a sua atividade de uma natureza secreta e não observável pelos cidadãos afetados, a norma constante do artigo 4.º deve estar sujeita a um rigoroso controlo de constitucionalidade. Assim, o princípio da necessidade, uma das dimensões do princípio da proibição do excesso, impõe que o acesso aos dados de tráfego lesivo da autodeterminação informativa se destine a reagir a situações de perigo suficientemente indiciadas, ou seja, a situações em que se nada for feito para o evitar, bens constitu- cionalmente protegidos – como a vida, a liberdade e a integridade pessoal ou a independência e a integridade nacionais – serão provavelmente lesados. Ora, no âmbito das ações de prevenção criminal, a lei não tem previsto intromissões nas comunicações eletrónicas: o acesso ao conteúdo das comunicações só pode ser autorizado no “inquérito” ou em qualquer outra fase do processo penal (artigos 187.º e 189.º do CPP e artigo 18.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, relativo ao domínio do cibercrime). Por via disso, o tratamento de dados pessoais para fins de investigação criminal «deve limitar-se ao necessário para prevenção de um perigo concreto ou repressão de
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