TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
91 acórdão n.º 464/19 dados de tráfego de internet afeta as mesmas dimensões da privacidade e proteção de dados pessoais, qualquer que seja a utilização que se tenha da internet . Em ambos os modos de utilização, comunicações intersubjetivas e comunicações de massa, o tratamento não consentido dos respetivos dados de tráfego põe em causa valores e interesses do utilizador, tais como (i) a confiança que tem na segurança e reserva dos sistemas informáticos do fornecedor do serviço de acesso à internet ; (ii) o interesse em decidir, ele mesmo, acerca da utilização que poderá ser efetuada das suas informações pessoais; (iii) o interesse em não ser sujeito a decisões exclusiva- mente automatizadas dos seus dados; (iv) o interesse em conhecer, dispor, controlar, atualizar, corrigir ou apagar os dados pessoais que lhe digam respeito; (v) o interesse em conhecer a finalidade do tratamento dos seus dados (vi) o interesse na não divulgação de dados objeto de tratamento. Daí que, face à semelhança dos valores e interesses afetados pelo tratamento não consentido de ambas as categorias de dados de internet e ao equivalente grau de danosidade que ele pode causar ao utilizador, a densidade de escrutínio a aplicar pela jurisdição constitucional à avaliação da escolha legislativa não possa ser menor em alguns deles. Ainda que se admita que nem todos os dados de internet constantes da previsão do artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto, estejam abrangidos pela mesma área de tutela que a Constituição reserva às comunicações eletrónicas, o seu tratamento não autorizado pode contender diretamente com os mesmos bens jurídico-constitucionais. À semelhança do que acontece com o sigilo das telecomunicações assegurado no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, também aqui o que está em causa é assegurar o livre desenvolvimento da personalidade e a privacidade de cada um através da utilização da internet à margem da publicidade. Por causa disso, a densidade de escrutínio terá que ser tanto maior quanto mais evidente, ou manifesta, for a inexistência de fundamento para um regime diferenciado de intromissões com referência aos dados de internet . 11.2.1. É certo que, como vimos, a Constituição consagra um regime diferenciado de intromissão nos dados de internet : de acordo com a previsão do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, os dados de tráfego relativos a comunicações entre pessoas estão abrangidos pela área de tutela da inviolabilidade das telecomu- nicações, existindo uma autorização constitucional especial para a ingerência das autoridades públicas nesse domínio, circunscrita apenas a matéria de investigação criminal; já os dados de tráfego na internet que não envolvam comunicações interpessoais, na medida em que permitem identificar o nome, morada e outros dados de identificação do utilizador, são considerados “dados pessoais” protegidos apenas pelas normas gerais do artigo 35.º da CRP, que admitem restrições em domínios que podem extravasar o âmbito da investigação criminal. Não há dúvida de que, no que concerne aos dados de tráfego no âmbito das comunicações intersubjeti- vas, incluindo os dados de internet , a tutela especial da autodeterminação comunicativa afasta ou dispensa a tutela geral da autodeterminação informativa; e quanto aos dados de tráfego de internet fora desse âmbito, é convocável apenas esta última tutela geral. Daqui não decorre, contudo, que as dimensões da privacidade e da proteção de dados pessoais dos uti- lizadores eventualmente em causa tenham menor merecimento constitucional do que aquelas que também podem ser lesadas no âmbito das comunicações interpessoais. E, por isso, a intensidade de escrutínio exigida, apesar da diferença dos parâmetros constitucionais em causa, não pode deixar de ser similar ou equivalente. Na verdade, se a Constituição autoriza o tratamento não consentido de dados de tráfego relativos a comunicações entre pessoas, dir-se-á que também não exclui a invasão de dados de tráfego que não dão suporte a autênticas comunicações, uma vez que nesse caso a perda de privacidade não atinge uma das dimensões daquela outra (a privacidade das comunicações). Mais: a razão de ser da legitimidade constitucio- nal da ingerência relativa aos dados de trafego não estará tanto na diferente categoria de dados – pressuporem ou não um ato de comunicação intersubjetiva –, mas sobretudo nas especificidades em termos de interesse público e de garantias próprias do domínio em que a restrição pode atuar: a investigação criminal.
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