TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

90 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Na verdade, é de afastar uma interpretação jurídico-constitucional segundo a qual pudesse arredar-se o elemento literal do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, e admitir a existência, nesta matéria, de uma restrição a um direito fundamental não expressamente autorizada pela Constituição, cujo escrutínio se cen- traria, por parte do Tribunal Constitucional, num mero juízo de proporcionalidade, nos termos do artigo 18.º da Constituição, atentos os direitos e valores constitucionais conflituantes cujo equilíbrio se procura. São demasiado patentes as divergências em relação ao processo criminal, tal como é concebido no nosso Estado de direito democrático, para que possa cabalmente sustentar-se essa posição. Note-se, no entanto, que o Tribunal Constitucional não ignora que esta é uma matéria na qual, tal como na questão mais lata da interferência nas comunicações privadas em sede de processo penal, e por maioria de razão, ecoam “com particular ressonância, as antinomias político-criminais de fundo, subjacentes a todo o direito das proibições de prova”; não se olvida, igualmente, que neste campo “releva sobremaneira daquela ‘dramatização da violência e da ameaça’ (Hassemer) induzida nas representações coletivas pela mais recente explosão do crime organizado, maxime do terrorismo e do tráfico de estupefacientes” (Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 281). E não ignora, igualmente, que neste tipo de matéria se impõe a consideração do dever estadual de garan- tir a segurança, que decorre do n.º 1 do artigo 27.º da Constituição. Contudo, o Tribunal Constitucional é o garante de um determinado parâmetro constitucional, em que muitas das ponderações entre direitos e valores constitucionais potencialmente em conflito foram já levadas a cabo pelo legislador constituinte. Não lhe cabe, pois, no quadro de um Estado de direito democrático, substituir-se-lhe, pelo que deve, na questão ora em análise, respeitar-se a operação de concordância prática realizada pelo legislador e consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, porque foi esta a opção do poder constituinte democraticamente legitimado. 11.2. O acesso a dados de tráfego que não envolvem comunicação intersubjetiva Importa agora analisar a constitucionalidade, à luz dos artigos 26.º, n.º 1 e 35.º, n. os 1 e 4, ambos da Constituição, do segmento ideal do artigo 4.º que se refere ao acesso aos dados de tráfego, que não envolvem uma comunicação intersubjetiva, pois o conhecimento destes dados pelo SIS e pelo SIED representa, neces- sariamente, uma mais intensa devassa da vida privada do que o acesso aos dados de base ou a dados de localização, previstos no artigo 3.º. Na avaliação da extensão da ingerência necessária à proteção de outros bens constitucionais deve começar por se analisar se o grau de danosidade causado pelo acesso e tratamento desta específica categoria de dados de tráfego difere substancialmente da intensidade da intromissão e devassa que o acesso aos demais dados de tráfego incluídos na previsão daquele artigo 4.º provoca à privacidade e à autodeterminação informacional do titular dos dados. Não obstante aqueles dados não se reportarem a concretas e efetivas comunicações realizadas ou tenta- das entre pessoas, mas apenas entre pessoas e máquinas ou até mesmo entre máquinas ( machine-to-machine communications ) proporcionadas por “agentes de software ”, a verdade é que podem assentar nos mesmos dados de base dos segundos e, tal como estes, possibilitar a monitorização, vigilância e controlo de movimen- tos de pessoas, assim como a construção de perfis de utilizadores que comportam riscos evidentes de perda de privacidade. Com efeito, a recolha e tratamento de “dados de navegação” na internet, ainda que não seja em tempo real ou através de acesso à totalidade dos dados armazenados pelos prestadores de serviços de comuni- cações eletrónicas, possibilita conhecer as escolhas, comportamentos, hábitos, inclinações, gostos, vivências e centros de interesse do titular dos dados, e com base neles, avaliar e tipificar o seu comportamento e as suas particularidades. Por isso, tal como se verifica com a recolha e tratamento dos dados de uma autêntica comu- nicação interpessoal, em que é evidente e significativa a perda de privacidade dos respetivos interlocutores, o conhecimento e tratamento do rasto das marcas e sinais que a ligação à internet deixa atrás de si pode causar equivalente prejuízo à privacidade da pessoa em causa. De facto, com exceção dos dados necessários para encontrar e identificar o destinatário do correio ele- trónico através da internet ou de uma comunicação telefónica através da internet , o tratamento dos demais

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