TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
89 acórdão n.º 464/19 pois continua coartada a possibilidade de defesa dos cidadãos contra a ingerência do Estado na sua esfera privada. (iii) Indefinição do sentido e alcance do papel do Procurador-Geral da República Mais ainda, note-se, no que respeita à intervenção da Procuradora-Geral da República, prevista no n.º 2 do artigo 5.º da Lei Orgânica n.º 4/2017 (“o processo de autorização de acesso aos dados é sempre comu- nicado à Procuradora-Geral da República”), e apresentada como um dos elementos de garantia de respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, que esta tem escassa relevância prática. Logo, e em definitivo, por- quanto a intervenção do Ministério Público neste processo não se ajusta ao papel e à função do Ministério Público no processo criminal. Além do mais, o seu papel em todo o processo carece de densificação, mesmo após a entrada em vigor da Portaria n.º 237-A/2018, não se compreendendo cabalmente a natureza da sua intervenção, mais ainda quando esta consistiria num dos elementos de equiparação das garantias do acesso aos dados de tráfego às garantias do processo penal. Assim, a Lei prevê que a Procuradora-Geral da República tenha “conhecimento” do pedido de acesso a dados (artigo 9.º), da transmissão diferida desses mesmos dados (artigo 11.º); que seja notificado das decisões de cancelamento de acesso e de destruição dos dados, para efeitos do exercício das suas competências legais (artigo 12.º); e que lhe sejam imediatamente comunicados os dados obtidos que indiciem a prática de crimes de espionagem e terrorismo (artigo 13.º). Do disposto na Portaria n.º 237-A/2018 conclui-se que a Procuradora-Geral poderá pronunciar-se sobre o pedido de acesso [alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º] e que é informada da deliberação da formação de juízes do Supremo Tribunal de Justiça sobre o acesso aos dados, podendo reagir, sem que se saiba em que termos [alíneas f ) e h) do n.º 3 do artigo 1.º]; tem ainda conhecimento da remessa do ficheiro de resposta com os dados, pelo prestador de serviços de comunicações eletrónicas, podendo também aqui pronunciar-se [alíneas i) e j) do n.º 3 do artigo 1.º]. Desta forma, fica patente a indefinição do papel do Ministério Público no processo de acesso a dados de tráfego por parte dos oficiais de informações do SIRP, não sendo claras as suas competências nesta matéria, nem os efeitos jurídicos de eventuais pronúncias da Procuradora-Geral, quando legalmente admissíveis. (iv) Dificuldade de exercício do direito de acesso aos dados conservados Por último, note-se que o direito de acesso dos cidadãos aos dados processados ou conservados nos centros de dados do SIS e do SIED, que corresponde ao direito fundamental previsto no n.º 1 do artigo 35.º da Constituição, só pode ser exercido através da Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP, à luz do n.º 6 do artigo 15.º da Lei Orgânica n.º 4/2017. Ou seja, é um direito que só pode ser efetivado nos termos do artigo 26.º da Lei n.º 30/84, sendo, nos termos legais, da exclusiva competência da Comissão de Fiscalização de Dados do SIRP. Esta atua, assim, como intermediário entre o cidadão e os serviços de informações, e desempenha as suas funções de fiscalização através de verificações periódicas dos programas, dados e infor- mações por amostragem, fornecidos sem referência nominativa; e, igualmente, pelo acesso a dados e infor- mações com referência nominativa (particularmente quando a Comissão entenda estar perante denúncia ou suspeita fundamentada da sua recolha ilegítima ou infundada). A Comissão de Fiscalização deve ordenar o cancelamento ou retificação de dados recolhidos que envolvam violação dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na lei e, se for caso disso, exercer a correspondente ação penal. Contudo, e como se assinala no Parecer da CNPD acima mencionado, “não se impõe aos Diretores do SIS e do SIED um dever de colaboração e de prestação de todas as informações que lhes forem solicitadas (como sucede, por exemplo, no artigo 24.º, n.º 1, da Lei da Proteção de Dados Pessoais - LPDP), mas antes a mera prestação de um especial apoio, não estando por isso afastado que a natureza secreta da atividade do SIRP justifique a negação da prestação de qualquer informação”. 11.1.3. Ante o que fica dito, pode afirmar-se que, além de o procedimento de acesso a dados de comuni- cações e de internet por parte dos oficiais de informações do SIRP não ser, natural e obviamente, um processo criminal do ponto de vista formal, também dele é muito distinto do ponto de vista material e garantístico.
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