TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
84 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL seu conteúdo pelos direitos fundamentais consagrados no artigo 26.º, que se referem ao desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade e vida privada e familiar dos cidadãos. Por sua vez, o direito à reserva da vida privada é um direito vulnerável aos avanços tecnológicos, protegido também pelo artigo 35.º da Constituição, que consagra, como vimos, a proteção dos cidadãos perante o tratamento de dados pessoais informatizados. Pode, por isso, dizer-se que os direitos fundamentais consagrados nos artigos 34.º (inviolabilidade do domicílio e da correspondência) e 35.º, n.º 4 (proibição do acesso a dados pessoais de terceiros) funcionam como garantias do direito à vida privada., que se analisa em dois direitos menores: (a) o direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem. Os direitos de personalidade consagrados no artigo 26.º significam, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Vol. I, ob. cit. , p. 468), um «direito ao segredo do ser» (direito à imagem, direito à voz, direito à intimidade da vida privada, direito a praticar atividades da esfera íntima sem videovigilância). Por força da dimensão valorativa destes direitos, a Constituição impõe ao legislador a obrigação de lhes garantir efetiva proteção contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias (artigo 26.º, n.º 2, da Constituição), em face dos sofisticados meios técnicos usados para a devassa da vida privada e para a colheitade dados sobre ela (cfr. Acórdãos n. os 255/02 e 207/03). Finalmente, importa sublinhar que a tutela da privacidade está ligada, por inerência, à liberdade indi- vidual. Ser livre é ter direito de expressão, mas, também, ter direito a reservar a sua vida privada e a construir um espaço existencial livre de terceiros – «o direito a estar só» ou, como afirma Paulo Mota Pinto, «o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal» [cfr. «O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada», in Boletim da Faculdade de Direito , Universidade de Coimbra, LXIX (1993), pp. 508-509]. 10.2. Acontece que, para estes direitos, o legislador constituinte autoriza, de forma explícita, a inter- venção do legislador ordinário na esfera dos direitos fundamentais à reserva de intimidade da vida privada e à proteção de dados pessoais. É o que sucede, nomeadamente, nos n. os 1, 3 e 4 do artigo 35.º da Lei Fun- damental, onde são admitidas exceções ao direito de proteção de dados pessoais, nas várias dimensões em que ele se exprime, designadamente em relação à proibição absoluta de tratamento de certo tipo de dados respeitantes à «vida privada» e à interdição de acesso de terceiros. Nesses preceitos, a Constituição autoriza a lei ordinária a restringir o conteúdo do direito, atribuindo poderes de regulação que estão sujeitos ao regime de restrição dos direitos, liberdades e garantias consagrado no artigo 18.º. É sabido que o n.º 2 do artigo 18.º impõe a observância do princípio da proporcionalidade em matéria de intervenções restritivas de direitos fundamentais, estabelecendo que a lei deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Por isso, na matéria a que respeita o presente processo, não pode deixar de se ter em conta a necessidade da concordância prática entre os direitos fundamentais das pessoas acerca das quais o SIRP pretenda reunir informações e os interesses da segurança pública e do combate à criminalidade organizada, como a espionagem e o terrorismo. É evidente que a intromissão em dados de comunicações põe diretamente em conflito direitos e valores constitucionais: por um lado, atinge um espectro de bens jurídicos ou direitos fundamentais tão eminentes como a dignidade humana, o desenvolvimento da personalidade, a integridade pessoal, a privacidade/intimidade, a autode- terminação informativa e a confidencialidade e integridade dos sistemas técnico-informáticos; e por outro, assegura valores constitucionais da comunidade, como a segurança interna e a defesa nacional. De onde se segue que, no juízo de ponderação, à luz do princípio da proibição do excesso, tem que ser analisado se a intervenção das entidades públicas na privacidade e na liberdade dos cidadãos constitui ou representa um custo para os direitos dos cidadãos, desrazoável, excessivo ou desproporcionado, em relação aos fins visados pela medida em causa.
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