TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
148 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL informação visa, por via da ponderação de dados meramente circunstanciais, propiciar o conhecimento de elementos relacionais que objetivamente expressem uma relação objetivada com os fatores de ameaça preten- didos antecipar. Menos que isto, só pode significar o não acesso a metadados, em contraciclo com a totali- dade dos serviços de informações europeus, que partilham o nosso espaço de referências constitucionais. 3.2.3. Finalmente, quanto à proporcionalidade em sentido estrito, cujas múltiplas manifestações de conformidade foram já referidas por diversas vezes ao longo deste voto, retemos aqui alguns pontos especí- ficos, em vista da caraterização do acesso a dados de tráfego como expressão de uma relação equilibrada no balanço entre os valores em causa na prossecução do objetivo subjacente à opção legislativa assumida e o nível de restrição da posição afetada por essa opção. Não vale neste quadro a descrição do acesso individualizado a dados de tráfego pelos serviços de infor- mações, com base num exigente controlo judicial externo de pertinência, como “[redução dos cidadãos] a identidades digitalmente criadas e heteroconstruídas, baseadas em perfis definidos por terceiros, com a conse- quente desumanização das pessoas e estandartização dos seus comportamentos, aniquilando-se a privacidade e condicionando-se a liberdade, assim acabando por perverter a democracia” (citei o penúltimo parágrafo do ponto 11.2.4. do texto do Acórdão). A descrição deste cenário fantasmagórico não tem a mais remota relação com o tipo de acesso individualizado estabelecido pelo legislador português relativamente a todo o tipo de metadados. Os perfis em causa – usando a terminologia do Acórdão –, são definidos por terceiros, no sentido em que o são os elementos típicos de um crime, aqui atuantes nos domínios temáticos referidos no artigo 4.º da LM, com um claro sentido de filtragem de referências muito abstratas, desviantes de um acesso propiciado pela referenciação concreta num quadro de proximidade à ameaça. A diferença, para referir o óbvio quanto ao suposto efeito de etiquetagem que o trecho acima transcrito parece pretender sugerir, é que a produção de informações não induz as graves consequências decorrentes da adjetivação penal. De facto, faz toda a diferença relativamente ao cenário construído no Acórdão, a circunstância de o acesso se processar individualizadamente, com base numa construção particularmente restritiva, que afasta o perigo envolvido num acesso massificado e não filtrado pela instância de controlo. Esse perigo, que é real noutras ordens jurídicas [43] – e que dá sentido à jurisprudência do TJUE neste domínio –, é pura e [43] Ilustrando com um exemplo referido, exatamente, àquilo que o legislador português não fez, esconjurando o correspon- dente perigo (já aflorado na nota 18, supra ), lembramos o conhecimento, no quadro das chamadas revelações Snowden, do documento designado Verizon Order , referida a uma decisão do FISA Court , determinando à operadora em causa a transferên- cia em massa para a National Security Agency dos metadados referidos a todas as chamadas efetuadas a partir dos EUA, e vice versa (David E. Sanger, The Perfect Weapon , cit., p. 66), opção justamente qualificada como decorrente de uma demissão do FISA Court do papel de controlo individualizado próprio de uma instância judicial. Exemplifica esta situação como o efeito traumático dos atentados de 11 de setembro “[…] distorceu a capacidade racional de julgamento […]” dos destinatários dessa informação, ao ponto de os lançar num processo de acumulação, desprovido de sentido, de massas completamente ingeríveis de informação, “[…] simplesmente porque algum dia poderia revelar-se útil” ( ). Esta perversão é justamente designada, no jargão dos analistas, como a ilusão dos dados, correspondente a uma patologia de cará- ter insidioso, indutora de ineficiência na análise, que se oculta num ilusório sentimento de eficácia decorrente de uma disponibi- lidade estratosférica de massas de informação, todavia impossíveis de explorar com utilidade e, consequentemente, de processar, não obstante parecerem situadas, ali mesmo, como que “à mão de semear”. Trata-se de uma ilusão pura e simples: “[d]iversas patologias próprias dos sistemas de informações estão relacionadas com esta ilusão. O ‘sintoma’ corresponde à ‘procura compul- siva de dados’, um comportamento reflexo de instituições cuja razão de ser é a recolha de informações. Os problemas induzem uma procura de cada vez ‘mais dados’, em lugar de ‘melhores dados’ ou melhor análise dos dados. Este fenómeno conduz a uma ‘sobrecarga de informação’, em que a capacidade de análise é socavada pela necessidade de gerir o peso da informação recolhida e, por isso, aparentemente disponível. Agrava-se, deste modo, o problema do ‘ruído’: uma vez que a probabilidade de os analistas que tratam a informação ‘em bruto’ se depararem com um fragmento contendo informação de ‘alta qualidade’ é menor do que a probabilidade de encontrarem algo relativamente de ‘menor qualidade’, o sistema pode mesmo sucumbir por esmagamento. O ‘ruído’, num sistema de informações, pode tornar ainda mais difícil ‘unir os pontos’ [no original connect the dots , referenciando os passatempos de jornal destinados a descobri um desenho coerente num conjunto de pontos; podíamos expressar a mesma ideia com a expressão, alcançar um desenho coerente]” (James Sheptycky, “To go beyond the intelligence cycle of intelligence-led policing”, Understanding the Intelligence Cycle , ed. Mark Phythian, Routledge, Londres, Nova York, 2014, p. 107).
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