TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
145 acórdão n.º 464/19 Está em causa a discussão e votação do que correspondeu, nos trabalhos da Assembleia Constituinte, ao artigo 21.º do projeto respeitante ao Título dos Direitos, liberdades e garantias [36], refletindo este o que veio a corresponder, no texto final da Constituição de 1976, exatamente ao artigo 34.º atual [este, ressalvada a alteração de 1997 antes referida (cfr. nota 29, supra e texto ao qual se refere), mantém-se desde 2 de abril de 1976]. A redação utilizada como base da discussão então travada, apresentava o seguinte conteúdo: Artigo 21.º 1 – O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis. 2 – É proibida, designadamente, toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas teleco- municações, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal. 3 – A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei. Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio senão com o consentimento da pessoa aí domiciliada. Este texto, cujo n.º 2 veio a corresponder ao n.º 4 do artigo 34.º, foi aprovado por unanimidade quanto aos n. os 1 e 2. Relativamente ao n.º 3, foi apresentada uma proposta de alteração pelo Deputado Américo dos Reis Duarte, da UDP (União Democrática e Popular, que elegeu um Deputado à Assembleia Constituinte), com o seguinte teor: “3 – [a] entrada no domicílio dos cidadãos só pode ser ordenada por decisão de um tribunal popular ou de uma comissão de moradores, nos casos segundo as formas a decidir pelas assembleias populares” (esta proposta foi rejeitada, recolhendo apenas o voto do proponente) [37]. Esta vicissitude particular, referindo-se a uma questão distinta da aqui diretamente relevante, revela uma parte do contexto histórico desta, sendo aqui indicada por ilustrar bem um dos polos motivacionais do legis- lador constituinte em 1975, na adoção do regime consubstanciado no artigo 34.º, com a limitação constante do n.º 4 (decorrente do n.º 2 do referido artigo 21.º). Desde logo – correspondendo a um desses polos – valeu, no contexto limitador de ingerências das autoridades no domicílio, correspondência e nas telecomunicações, a memória traumática, então (em 1975) ainda bem presente, da PIDE/DGS, cuja atuação arbitrária nesses domínios constituía um elemento central da prática da polícia política do regime derrubado em 25 de abril de 1974 [38], coroando o novo texto cons titucional a reversão dessa situação. Da mesma forma – e corresponde ao outro polo motivacional a conside rar, ilustrado pelo episódio da Assembleia Constituinte acima relatado –, a recondução ao aparelho judicial comum da autorização de exceções às limitações de ingerência das autoridades nesses domínios, concreta- mente no das telecomunicações, visou materializar o afastamento das ditas “legalidades revolucionárias” – por oposição à legalidade democraticamente legitimada, pela eleição da Assembleia Constituinte – geradas no decurso do processo revolucionário de rutura com o regime derrubado em 25 de abril de 1974. Refiro- me a factos históricos conhecidos e a um processo de institucionalização da democracia portuguesa no qual a Constituição de 1976 (e a Revisão Constitucional de 1982) constituíram marcos históricos referenciais [39]. Sendo esse o contexto histórico da opção constitucional que ora nos interpela, dela permanece – como [36] O método em geral de elaboração do texto, que originou esse artigo 21.º, e, mais tarde, na versão final, o artigo 34.º, é explicitado por J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira ( Constituição da República Portuguesa Anotada , Coimbra, 1978, pp. 4/5, nota 11). [37] Cfr. Diário da Assembleia Constituinte , n.º 38, de 28 de agosto de 1975, p. 1058. [38] Cuja extinção foi, sintomaticamente, logo determinada pelo Decreto-Lei n.º 171/74, de 25 de abril, da Junta de Salvação Nacional. [39] A transição portuguesa, subsequente ao 25 de abril, no que respeita à estruturação de uma arquitetura constitucional democrática, traduziu-se num processo gradual, conturbado, que assentou em modelos iniciais ambíguos, referidos a uma designada “democracia popular”, que procurava emular experiências históricas conhecidas. A estabilização democrática em Portugal só ocorreu, verdadeiramente, com a Revisão Constitucional de 1982, com a extinção do Conselho da Revolução, sem esquecer a criação do Tribunal Constitucional.
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