TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

136 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ora, uma correta abordagem da questão de constitucionalidade colocada na presente fiscalização abstrata deve assumir plenamente a distinção entre os dois domínios funcionais, projetando o sentido profundo dessa diferença na perspetivação da conformidade constitucional de quaisquer permissões de acesso a informação para ulterior processamento por parte dos serviços de informações. Estamos, pois, perante uma relevante questão, a qual, aliás, não é específica da nossa ordem jurídico-constitucional, importando esclarecê-la. 2.1.1.3. A separação substancial dos dois mundos (serviços de informações, autoridades policiais) tem um óbvio sentido, correspondendo o quadro geral de uma diferenciação inequívoca entre as duas funções a exigências de controlo e de contenção de cada um dos domínios funcionais da atividade do Estado dentro do respetivo enquadramento constitucional. Isto não invalida, porém, que uma completa estanquicidade comunicacional desses dois mundos possa corresponder, na sua exacerbação, a um exagero sem sentido, concretamente quando a diferenciação se manifeste na total ausência de mecanismos propiciadores de algum tipo de comunicação, gerando perdas de eficiência em domínios tangenciais das duas funções, sempre que o custo deste efeito não corresponda à perversão do valor constitucional promovido com a separação entre produção de informações e a perseguição criminal. O caráter estanque da separação – e estamos a ilustrar esta ideia com um exemplo –, assente, aliás, na existência de mecanismos de travagem ou de neutralização da comunicação interagências, vigorou incontestada no espaço norte-americano até ao início deste século, sendo aí identificada pela sugestiva expressão “ The Wall ” [17]. Esta descreve procedimentos específicos e a estruturação organizacional de uma barreira absoluta de comunicação entre a CIA e o FBI e, quanto a este último, entre as funções de intelligence e de law enforcement (que razões históricas muito específicas fizeram coincidir, embora em [17] A expressão é associada a um texto publicado em 1989 por Americo R. Cinquegrana [“The Walls (and wires) Have Ears: The Background and First Ten Years of The Foreign Intelligence Surveillance Act of 1978”, in University of Pennsylvania Law Review , vol. 137, 1989, pp. 793/827] descrevendo essa separação, no quadro dos procedimentos restritivos estabelecidos pelo Foreign Intelligence Surveillance Act de 1978, interpretados – nos termos em que então o eram – pela estrutura de controlo judicial estabelecida nesse Diploma, o designado FISA Court ou FISC . [18] The 9/11 Commission Report …, cit. Neste Relatório consta, no capítulo 3 ( Counterterrorism Evolves – pp. 71/107, cfr., em especial o subcapítulo Legal Constraints on the FBI and «the Wall» , pp. 78/80), uma dura crítica do modelo organizacional identificado como “ the Wall ”. A razão histórica dessa separação exacerbada, assentou numa interpretação discutível da prática do Fisa Court , na sequência do caso Aldrich Ames (um caso de espionagem, no início dos anos 90 do século passado, que começou num quadro de intelligence e terminou como processo crime), visou colocar a perseguição criminal ao abrigo de uma possível “contaminação de provas” originadas na vertente de intelligence do FBI. Note-se que a 9/11 Comission considerou muito positivamente “[t]he removal of ‘the wall’ that existed before 9/11 between intelligence and law enforcement […]”. Trata-se de uma conclusão discutível, dificilmente sustentável na generalidade dos sistemas constitucionais europeus, e cujo suposto caráter benéfico, em termos de eficiência na luta contra o terrorismo internacional, permanece fundamentalmente por demonstrar. Certo é que, no presente (em 2019) dispomos de suficiente conhecimento retrospetivo para sustentar uma avaliação crítica das opções que, então (em 2001/2003) a “quente”, na sequência do profundo efeito traumático dos ataques do 11 de setembro, foram tomadas. Sabemos, por exemplo, que a destruição de barreiras à compartimentação de informação (os tão criti- cados “muros”, e a filtragem do conhecimento com base no “princípio da necessidade de saber”) conduziu, desde logo, a massivas fugas de informação (casos Chelsea Manning , Edward Snowden , WikiLeaks ), e conduziu – e esse é o aspeto aqui verdadeiramente relevante – a um abaixamento significativo dos mecanismos de defesa dos direitos individuais, decorrentes das exigências de con- trolo do acesso à informação por parte do Fisa Court , passando este a emitir, na sequência de alterações legislativas introduzidas em 2008 no FISA Act , mandados genéricos (por oposição a permissões de acesso individualizadas, como até então sucedia) de transferência em massa dos dados (de todos os dados) das operadoras de comunicações para os requerentes, concretamente para a NSA, transformando o Fisa Court , numa espécie de “agência administrativa”, com dificuldade em fugir ao duro qualificativo de “rubber stamp court ” (cfr. David Rudenstine, The Age of Deference. The Supreme Court, National Security, and the Constitutional Order , Oxford University Press, Oxford, New York, 2016, pp. 145/149, e David E. Sanger, The Perfect Weapon. War, Sabotage, and Fear in the Cyber Age, Scribe Publications, Londres e Victoria, Austrália, 2018, pp 65/67). Podemos atribuir a alguma pressão dos Estados Unidos sobre os aliados europeus certo “contágio” destes por esta prática de facilitação do acesso em massa a metadados (não de um acesso individualizado a determinados dados, decorrente de uma suspeita concreta, como inequivocamente sucede com a LM portuguesa) que conduziu à Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, invalidada em 2014 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

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