TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
135 acórdão n.º 464/19 constitucional – a presença circunstancial do que qualificamos como “pontos de contacto” – áreas de proximi- dade – entre as duas funções. Com efeito, embora ocorram, em algumas situações, coincidências temáticas no material fáctico de base tratado pelas duas atividades, não afasta essa incidência, longe disso, a profunda dife- rença de lógicas e de objetivos visados por cada uma das funcionalidades e das estruturas que as protagonizam. Esta confusão entre serviços de informações e autoridades policiais, que é gerada por aparências enganadoras e, em grande medida, alimentada por mitos [14], deve ser esclarecida, descodificando-se o sentido que esses tais “pontos de contacto” apresentam numa democracia constitucional, cujo quadro referencial é absolutamente incompatível (diametralmente antitético) da (com a) confusão, ou apropriação funcional mútua. Essa sobreposição de funções, que está bem além da mera proximidade e nega o paralelismo, corresponde, aliás, a um modelo conatural aos regimes totalitários, traduzindo-se frequentemente no que se designacomo polícia política. Ora, não sendo esse, como é óbvio, o modelo e o concreto enquadramento legal dos serviços de informações portugueses, designadamente pressupondo o acesso por estes a metadados adjetivado na LO 4/2017, direi, recorrendo ao exagero retórico através do qual Richard Posner repudia a mesma ideia: “[t]hey are intelligence agencies, operating by surveillance rather than by prosecution. Critics who say that an American equiva- lente of MI5 would be a Gestapo understand neither MI5 nor the Gestapo ” [15]. Esconjura-se, assim, por redução ao absurdo, a ideia muito presente neste tipo de debates, fruto de desconhecimento ou de preconceitos, segundo a qual uma estrutura policial, atuando no quadro da perseguição criminal, comportaria menos riscos relativamente à proteção dos direitos fundamentais do que a atuação de um serviço de informações, no seu espaço funcional legítimo num regime democrático. Esquece-se, porém, que reduzindo as coisas ao seu verdadeiro significado, o que subsiste na perseguição criminal, e se realiza na adjetivação penal (e que constitui atividade absolutamente estranha e totalmente vedada aos serviços de informações), corresponde à forma de atuação do Estado commaior potencial agressivo sobre os direitos individuais: a que conduz à aplicação de sanções criminais e pode envolver, in itinere , a sujeição a medidas de coação fortemente compressoras dos direitos individuais. A afirmação dessa diferença, no quadro em que aqui nos movemos, é inequívoca, como decorre da cara- terização da atividade de produção de informações traçada por Miguel Nogueira de Brito: “[…] os serviços de informações […] atuam num plano que antecede a atividade policial de controlo de perigos. O propósito da sua atuação não obedece ao objetivo direto de implementar medidas de controlo de perigos ou de investi- gação criminal. As informações por si reunidas visam antes fundar a avaliação e decisão políticas que depois se manifestarão de diversos modos, por exemplo, através da criação de procedimentos contra associações ou partidos contrários à Constituição ou do desenvolvimento de programas sociais destinados a pessoas sujeitas a extremismos de vária ordem. Compreende-se, assim, que os serviços de informações não tenham típicas competências de polícia, mas apenas a competência de mobilizar meios tendentes à captação e tratamento de informação” [16]. [14] Aos quais é particularmente propensa: “[…] nos esquemas gerais de perceção do mundo social pelos seus atores e pelo público […] o espaço imaginário do «espião» é incomensuravelmente maior que o seu espaço real […]”, como certeiramente observou Alain Dewerpe ( Espion. Une anthropologie historique du secret d’État contemporain , Éditions Gallimard, Paris, 1994, pp. 9/10). [15] Richard A. Posner, “The 9/11 Report: A Dissent”, The New York Times Book Review, 29/08/2004, acessível em: https://www.nytimes.com/2004/08/29/books/the-9-11-report-a-dissent.html. C orresponde o texto a uma recensão crítica ao Rela- tório da Comissão Nacional de Inquérito aos ataques de 11 de setembro ( The National Commission on Terrorist Attacks Upon the United States ), apresentado em julho de 2004: The 9/11 Commission Report. Final Report of The National Commission on Terrorist Attcks upon the United States . Authorized Edition, W.W. Norton & Company, Ltd., New York, London, 2004, 568 pp. Tal crítica foi depois desenvolvida no livro de Richard A. Posner, Preventing Surprise Attacks. Intelligence Reform In The Wake of 9/11 , Rowman & Llittlefield Publishers, New York, Oxford, 2005, pp. 180/185. Note-se que a proposta da criação nos EUA de um serviço de informações doméstico – referida no Relatório como equacionar “[…] a proposal for an ‘American MI5’” – foi expressamente rejeitada pela Comissão de Inquérito (cfr. pp. 423/425). [16] “Direito de Polícia”, Tratado de Direito Administrativo Especial, (coords. Paulo Otero, Pedro Gonçalves) vol. I, Coim- bra, 2009, pp. 320/321.
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