TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

133 acórdão n.º 464/19 Note-se que estamos, em qualquer caso, perante mundos separados, que atuam com base em racionalidades bem distintas e visando objetivos muito diferentes, embora, como mundos paralelos que não deixam de ser, designadamente ao lidarem com certos aspetos dos mesmos fenómenos [6], “[comunguem] algumas dimensões […]” [7]. Tal paralelismo, sugerindo, à superfície, a existência de semelhanças, pode induzir algum enviesamento na diferenciação entre produção de informações e atividade policial, esquecendo que a essência da diferença, a despeito de uma ou de outra partilha de certos ambientes de trabalho, permanece inequívoca e tem nessa sepa- ração uma teleologia própria: evitar mútuas poluições de efeito espúrio, contendo a atividade de cada um dos organismos no espaço funcional que lhe é próprio e que justifica o acervo de meios de atuação respetivos. A aproximação que aqui empreendemos a este problema – procurando o sentido dessa diferenciação – assentará na caracterização da função de produção de informações, captando o sentido finalístico desta atividade do Estado, daí sendo dedutível, quase por evidência, o quanto ela é diversa da perseguição criminal e da atividade de polícia, e, acrescente-se, o quanto ela, em termos das consequências que projeta, fica aquém da potencialidade de interferência com os direitos individuais presente na perseguição criminal. 2.1.1.1. Encetando esse percurso, procurando uma concetualização da atividade de produção de informa- ções – a atividade protagonizada pelos serviços de informações aos quais (e em função da qual) a LO 4/2017 adjetiva o acesso a metadados – somos conduzidos a um conceito abrangente que gerou, no mundo anglo-- saxónico, um termo genérico (intelligence, que entre nós vale para produção de informações). Através deste referencia-se o resultado, o produto final visado, decorrente da agregação intencional de um conjunto de ativi- dades, numa dinâmica que se descreve como cíclica – correspondente ao que usualmente se designa como ciclo de produção de informações, envolvendo planificação, recolha de informação, análise e disseminação [8]. Estas atividades são conduzidas em segredo [9], visando um resultado expresso na manutenção ou melhoramento do ambiente de segurança, pela antecipação de fatores gerais ou já concretizados de risco e ameaça, visando possibilitar a implementação atempada (útil) de políticas ou de estratégias de prevenção, e mesmo a adoção de medidas concretas no âmbito de outros quadros funcionais [10], quando o produto informacional adquirido por via do processamento da informação (da análise) expresse incidências conducentes a uma resposta desse tipo. Esta, quando situada a um nível mais concreto, significará invariavelmente a saída da situação do domínio [6] Referi-me a esse espaço de proximidade – creio ser um termo apropriado – no ponto 10.1. do voto de vencido no Acórdão n.º 403/15. [7] Frederic F. Manget, “Intelligence And Law Enforcement”, in The Oxford Handbook of National Security Intelligence , (ed. Loch K. Johnson), Oxford University Press, Oxford, 2009, p. 189. [8] A ideia de um ciclo (que etimologicamente corresponde a um círculo) de produção de informações conceptualiza a dinâmica da função de produção de informações, através da qual, “[…] sequenciando atividades portadoras de uma funcio- nalidade específica, se cria uma narrativa, ligando os diversos passos envolvidos na criação de um produto final, designado ‘informação’ [intelligence], começando pela recolha de informações de base ou de notícias [ collection of raw material ] […], conduzindo, após processamento (validação, cotejo, análise e avaliação), a um relato sistematizado dirigido a um destinatário [ to some form of intelligence reporting to an end user ], seja este um decisor politico, um comandante militar ou uma autoridade encarregue da perseguição criminal […]. É a ideia de que a informação assim tratada acrescenta valor ao processo decisório relativo às politicas públicas [situadas nos diversos níveis funcionais dos destinatários] e induz uma resposta do destinatário que conduz esta narrativa a uma espécie de retorno sobre si própria, gerando como que um efeito de feedback que realimenta o processo já num plano superior, expressando a sua descrição, antes linearmente apresentada, como um ciclo” [David Omand, “Is it time to move beyond the intelligence Cycle?”, Understanding the Intelligence Cycle , (MarK Phythian, ed), Routledge, Londres, Nova York, 2014, p. 134]. [9] “[A] característica comum e principal desta atividade reside no seu caráter sensível, por questões de propriedade e de lega- lidade, mas principalmente por razões de vulnerabilidade das suas fontes e métodos à adoção de contramedidas […]. Daqui decorre o caráter secreto da atividade de informações: o secretismo constitui a imagem de marca das informações, a base da sua relação com o governo (com o destinatário da informação) e a sua autoimagem” (Michael Herman, Intelligence Services in The Information Age , Frank Cass Publishers, Londres, 2002, pp. 3/4). [10] Peter Gill, “«Knowing the self, knowing the other». The comparative analysis of security intelligence”, Handbook of Intelligence Studies (ed. Loch K. Johnson), Routledge, Londres, Nova York, 2007, p. 89, nota 1.

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