TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
126 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL no Acórdão se diz para fundamentar o juízo de não inconstitucionalidade das medidas de acesso previstas no artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, e que nos parece perfeitamente aplicável ao artigo 4.º. 11. Do ponto de vista dos direitos dos indivíduos visados pelo procedimento, a atribuição da competên- cia para autorizar o acesso aos dados a «uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, constituída pelos presidentes das secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções», constitui inequivocamente uma garantia da maior relevância. No exercício dessa função, caberá a tal formação subsumir nos conceitos legais de «alvo determinado», «situação de urgência», «muito difícil de obter» e «tempo útil» os factos que lhe sejam submetidos e, através do juízo de ponderação para que remetem, decidir se a suspeita concreta e individualizada invocada pelas autoridades do SIRP tem o grau de concretização e o nível de seriedade necessários para justificar a ingerência na priva- cidade individual. Esta intervenção do Supremo Tribunal de Justiça não é, ao contrário do que supõe a maioria, de natureza administrativa. É certo que a distinção entre as funções administrativa e jurisdicional se vai esbatendo à medida que nos afastamos dos casos paradigmáticos, como é aliás comum na generalidade dos conceitos jurídicos, e que a competência de controlo prevista na Lei Orgânica n.º 4/2017 se situa numa zona de indefinição, que porventura reúne características típicas de uma e a outra função. Mas há boas razões para se entender que a formação especial do Supremo Tribunal de Justiça é ainda um órgão judicial incumbido de exercer uma função jurisdicional. Por um lado, a atividade de controlo é materialmente homóloga daquela que, no âmbito de um processo penal pendente, é desempenhada pelo juiz de instrução quanto ao acesso a dados de conteúdo (artigo 187.º do Código de Processo Penal) e de localização celular (n.º 2 do artigo 189.º), sem que ocorra negar-se-lhe natureza jurisdicional. Por outro lado, os membros da formação são juízes, beneficiando das garantias de independência, inamovibilidade e irresponsabilidade e vinculados aos deveres de imparcialidade, defesa dos direitos e realização da justiça – garantias e deveres estes que inte- gram o estatuto dos magistrados judiciais e a definição constitucional dos tribunais, precisamente porque se adequam ao desempenho da função jurisdicional. De resto, o acórdão não retira todas as ilações da suposta natureza administrativa da formação especial do Supremo Tribunal de Justiça. Se a atividade desta integra a administração pública em sentido material, as normas da Lei Orgânica n.º 4/2017 que lhe atribuem competência são inconstitucionais, por violação do n.º 3 do artigo 216.º da Constituição, preceito de que se extrai uma proibição absoluta de os juízes exercerem a função administrativa. Acresce que este órgão de controlo, no entendimento de que não é um verdadeiro tribunal, não pode recusar a aplicação de normas inconstitucionais ao abrigo do artigo 204.º da Constitui ção, podendo fazê-lo apenas nas condições, francamente estreitadas pelo princípio da legalidade, em que seja admissível a chamada «fiscalização administrativa da constitucionalidade». Assim, debilita-se artificialmente a garantia dos direitos fundamentais. São estas, em suma, as razões pelas quais nos afastamos do juízo que fez vencimento, convictos de que os «ataques terroristas indiscriminados se destinam, pela sua própria natureza, a plantar o medo no coração de civis inocentes, a causar o caos e o pânico e a perturbar o normal funcionamento da vida quotidiana»; e, ainda que, «em tais circunstâncias, as ameaças à vida humana, liberdade e dignidade surgem não apenas das ações dos próprios terroristas, mas também da reação das autoridades diante de tais ameaças» (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, acórdão proferido pela Grand Chamber no caso Ibrahim and Others v. The United Kingdom , em 13 de setembro de 2016, ponto 293). Daí a necessidade imperiosa de um quadro legal neste domínio, como o estabelecido pela Lei Orgânica n.º 4/2017, que faça concordar, na medida do pos- sível, a liberdade individual com a segurança coletiva. – Gonçalo de Almeida Ribeiro e Joana Fernandes Costa.
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