TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

123 acórdão n.º 464/19 Aquilo que, por força da Constituição, não pode em caso algum ocorrer − e é essa, mas apenas essa, a tensão a que responde o direito das proibições de prova −, é a responsabilização criminal de certo agente pela prática de determinado ilícito com base em elementos de prova obtidos através do acesso a dados de conteúdo, ou a dados de tráfego respeitantes a uma comunicação intersubjetiva, à margem de um processo penal formalizado e sem que aí tenham sido asseguradas todas as garantias de defesa inerentes ao estatuto de arguido. Em matéria de dados de comunicação, as garantias que a pendência de um processo penal propor- ciona são aquelas que se explicam e justificam a partir da finalidade punitiva do processo: é na medida em que os elementos a que se acedeu poderão servir como meio de prova para sustentar uma condenação que ao arguido é assegurado o direito de contestar a sua validade − e logo, a sua atendibilidade − ao longo das diversas fases em que é suposto tomá-los em conta. Trata-se, por isso, de garantias que se situam numa fase posterior, e não prévia, à ingerência nas comunicações. As garantias que a existência de um processo penal assegura ex ante − e, mais do que isso, aquelas que é suscetível de assegurar − são unicamente as que resultam da verificação dos pressupostos legais que condi- cionam a admissibilidade do acesso − tipo de crime, pena aplicável e relevância ou indispensabilidade da ingerência do ponto de vista das finalidades que com ela se prosseguem −, da exigência de uma intervenção judicial e, finalmente, do juízo de ponderação que para ela se convoca. Em suma, garantias semelhantes, como veremos, àquelas de que a Lei Orgânica n.º 4/2017 faz depender o acesso pelas autoridades do SIRP a dados de tráfego que envolvem comunicações intersubjetivas, exclusivamente para os fins previstos no seu artigo 4.º (produção de informações necessárias à prevenção da espionagem e do terrorismo) e nunca como elementos de prova em processo criminal. 8. Excluída a base em que assenta a equivalência que o acórdão estabelece entre o conceito de «matéria de processo criminal» e o conceito de «processo criminal pendente», a pergunta a que se impõe responder é a seguinte: Qual é, então, o conteúdo positivo da restrição à proibição de ingerência nos dados de comuni- cação que a Constituição autoriza no inciso final do n.º 4 do artigo 34.º? Ou, dito de outro modo, o que é exatamente «matéria de processual criminal»? É todo o domínio da regulação que participe da natureza própria do «direito penal total», cuja proprie- dade essencial é a função específica de proteção dos bens fundamentais da vida em comunidade organizada, através da prevenção de lesões futuras e da repressão de lesões passadas. Nos casos de tutela retrospetiva, a defesa dos bens fundamentais da comunidade – precisamente aqueles que a Constituição consagra e incumbe o Estado de proteger − encontra o seu arquétipo de concretização no âmbito do processo criminal: é através da instauração de um processo que se determina se foi praticado determinado crime e quem foi o seu autor, e, em caso afirmativo, se decide qual a pena que a este deverá ser aplicada de modo a assegurar a reafirmação contrafáctica da validade e vigência da norma penal violada e, em última instância, a defesa da ordem constitucional. Ora, é nesta particular e relevantíssima finalidade, desempenhada paradigmaticamente pelo processo penal, que reside a razão de ser da autorização excecional de acesso a dados de comunicação prevista no segmento final do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição: ao limitar os possíveis casos de ingerência «à matéria de processo penal», a Constituição assegura que o acesso a dados de comunicação apenas poderá ser autori­ zado pelo legislador ordinário quando a medida que o concretiza participar da finalidade de defesa dos bens fundamentais da comunidade, e se mantiver, por via disso, dentro do critério de valor que caracteriza e sin- gulariza o domínio da vida que justifica tal restrição. Tal finalidade − isso parece isento de dúvidas − é comum ao acesso aos dados de tráfego pelas auto- ridades do SIRP, previsto no artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017. Trata-se, também aqui, de um acesso funcionalizado à defesa de bens fundamentais da vida em comunidade contra formas de agressão, não só penalmente relevantes − e também por isso subsumíveis num conceito material de «processo criminal» −, como singularmente destrutivas da ordem constitucional. As medidas de acesso contempladas no artigo 4.º

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