TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
122 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL a legitimidade democrática da ordem constitucional não se encontra de modo algum na suposta aritmética reforçada do processo constituinte, mas na capacidade de o texto constitucional, corretamente interpretado, honrar a promessa, encerrada no conceito material de constituição, de integração da pluralidade. 6.4. Finalmente, a leitura da maioria viola o princípio da estabilidade. Uma ordem constitucional duradoira não se vincula definitivamente a uma conjuntura histórica, comprometendo-se com pressupostos empíricos que não pode garantir, hipotecando o seu futuro ao hori- zonte de sucessivas revisões constitucionais, submetendo os problemas constitucionais aos ritmos da política ordinária, arriscando a abertura de um fosso imenso entre norma e realidade – e, por tudo isto, degradando irremediavelmente a sua força normativa e autoridade simbólica. Ressalvada a sua parte organizativa, que se traduz essencialmente num sistema de regras, o direito cons titucional tende a consubstanciar-se em princípios, porque só assim possui a ductilidade indispensável ao cumprimento da sua vocação de norma intertemporal que integra a pluralidade numa unidade política estável. É especialmente perversa – e, no limite, absurda − a ideia de a ordem constitucional poder excluir em termos absolutos, através de soluções fechadas ao devir histórico, o uso de meios proporcionais para a sua própria defesa perante ameaças inteiramente novas ou velhas ameaças que se revestem de formas cada vez mais sinistras e agressivas. Extrair da Constituição uma proibição categórica de defesa administrativa da ordem constitucional, através do acesso a dados de tráfego de «comunicações intersubjetivas», mesmo perante ameaças, como o ter- rorismo e a espionagem, que pelo seu potencial lesivo e ressonância simbólica vulnerabilizam as instituições fundamentais da democracia constitucional e põem em crise aguda a função preventiva da repressão penal, precipita o impossível dilema entre a impotência do poder público e a ineficácia das normas constitucionais. 7. Tudo visto, o único argumento relevante que parece aproveitar ao entendimento expresso na decisão baseia-se no elemento literal – no inciso final, «em matéria de processo criminal». Com efeito, apesar da singularidade dos seus pressupostos e critérios, a interpretação constitucional não deve fazer tábua rasa da forma escrita ou documental das normas constitucionais. Ora, serão decerto de difícil resolução os casos em que se verifica uma contradição insanável entre o texto constitucional e os princípios da interpretação, ou seja, em que é de todo em todo impossível reconciliar a forma com a maté- ria do direito constitucional. Mas de tais casos − hipóteses porventura académicas, tendo em consideração a textura avisadamente aberta da semântica constitucional − não temos de nos ocupar, pois a isso não nos condena, ao contrário do que se entende na decisão, o teor literal do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição. Ao considerar que, nos termos e para os efeitos previstos nesse preceito, apenas são qualificáveis como casos de ingerência em matéria de processo criminal aqueles que tiverem lugar no âmbito de um processo criminal pendente, a maioria incorre num duplo equívoco. Para além de não fugir a uma interpretação do texto constitucional à luz do direito ordinário − procurando e encontrando neste a categoria que traduz o sentido daquele −, o juízo que fez vencimento não consegue superar, pelo menos de forma convincente, as dificuldades que ele próprio cria quando faz assentar a justificação última do recorte da exceção prevista no segmento final do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição nas garantias constitucionais do arguido, e estas na existência de um processo penal formalizado, com o sentido que lhe é dado pelo Código de Processo Penal. Demonstra-o, desde logo, a circunstância de o acesso a dados de conteúdo no âmbito de um processo penal – domínio em que o potencial de lesão de autodeterminação comunicativa é da máxima intensidade − se não encontrar dependente da constituição, nem prévia, nem ulterior, do suspeito como arguido. Uma vez instaurado o inquérito − o que ocorre sempre que for adquirida a notícia do crime, independentemente do conhecimento da identidade dos seus agentes (artigo 262.º, n.º 1) −, o juiz de instrução pode autorizar, nos termos previstos na lei, tanto a apreensão de correspondência (artigo 179.º, n.º 1), como a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas (artigo 187.º, n.º 1), ainda que, por ausência de suspeita fundada quanto à autoria, o visado nunca chegue a ser constituído arguido (artigo 68.º, n.º 1, a contrario ) e o inquérito acabe por ser arquivado (artigo 277.º, n.º 2, segunda parte).
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