TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

121 acórdão n.º 464/19 que a jurisdição constitucional é «garante de um determinado parâmetro», como se fosse possível determinar o conteúdo de um parâmetro sem considerar a unidade axiológica da Constituição. Ou, mesmo na lógica seguida pela maioria, como se o Tribunal, no controlo da constitucionalidade das leis, pudesse atuar na condição de guardião de um e não de todos os parâmetros da Constituição. 6.2. Em segundo lugar, a interpretação do n.º 4 do artigo 34.º acolhida na decisão viola o princípio da concordância. A garantia dos direitos e liberdades é uma tarefa fundamental do Estado, consagrada na alínea b) do artigo 9.º da Constituição, preceito que ecoa o artigo 2.º da Declaração de 1789, que enunciava: «A finali- dade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis...» Ora, os direitos fundamentais têm funções negativas ou de defesa e funções positivas ou de crédito: aquelas correlativas do dever estatal de não agredir a esfera individual, através da restrição de direitos ou de liberdades; estas correlativas do dever estatal de proteger os indivíduos de comportamentos de terceiros ou perigos que afetam o gozo de bens. Na sua vertente negativa, os direitos fundamentais estabelecem limites à atuação do poder público, proibindo a compressão excessiva de direitos e liberdades; na sua vertente positiva, os mesmos direitos justificam e impõem a atuação do poder público, proibindo a proteção insuficiente de bens. Na verdade, segurança e liberdade são duas faces da mesma moeda: a segurança sem a liberdade é inútil, a liberdade sem a segurança é impossível. Pela sua própria natureza, pois, a ordem constitucional proscreve simultaneamente o abuso do poder e o défice de proteção. A expressão natural deste equilíbrio é o princípio da proporcionalidade. Porém, segundo a leitura da maioria, a Constituição proíbe, em termos absolutos, a violação do sigilo das comunicações fora do âmbito de um processo criminal, independentemente das circunstâncias em que tal possa ocorrer ou do peso concreto dos imperativos de proteção que o reclamem. A ordem constitucional que resulta de uma tal interpretação não procura de modo algum a concordância entre liberdade e segurança no domínio da pre- venção de perigos – antes sacrifica cegamente um dos valores, empenhando o modo de vida de que depende a realização de ambos. 6.3. Em terceiro lugar, a interpretação proposta na decisão viola o princípio da integração. Uma ordem constitucional que se arroga a última palavra sobre «as ponderações entre direitos e valores constitucionais potencialmente em conflito» − entre as quais se destaca a tensão matricial entre liberdade e segurança −, em vez de devolver ao processo político democrático a gestão do dissenso entre os cidadãos sobre a correta ponderação a fazer em cada domínio da vida em sociedade, compromete a sua capacidade de reunir a pluralidade numa casa comum. A partilha dos valores do Estado de direito democrático postulada pelo constitucionalismo não implica nenhuma ficção de que os cidadãos estão de acordo quanto à interpretação e ponderação desses valores; reclama, sim, o reconhecimento constitucional do princípio democrático, como património comum de uma pluralidade irredutível, e a consequente vinculação do poder constituinte a orga- nizar democraticamente a vida política, através de normas constitucionais relativas aos órgãos, competências e processos de decisão coletivos. Numa democracia constitucional, a generalidade das ponderações que dividem razoavelmente a comu- nidade são confiadas ao processo legislativo ordinário e submetidas ao controlo de uma jurisdição dotada de legitimidade democrática indireta e incumbida de escrutinar mais ou menos intensamente a razoabili- dade das opções tomadas. A ordem constitucional democrática habilita este processo de autodeterminação coletiva através da representação eleitoral pela assembleia legislativa e da representação argumentativa pela jurisdição constitucional. Por outro lado, o «legislador constituinte» não goza de uma legitimidade democrática robustecida para se antecipar ao legislador ordinário na ponderação de valores constitucionais. Pelo contrário, os textos cons­ titucionais mais democráticos são aprovados por simples decisão maioritária de uma assembleia constituinte ou dos cidadãos em referendo, exigindo por regra mais votos para a sua alteração do que os que foram necessários para a sua aprovação e proibindo necessariamente, de forma expressa ou implícita, a subversão da identidade constitucional pelo poder de revisão. Este aparente paradoxo dissolve-se se atentarmos em que

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