TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

120 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL consubstancia um pacto de vida comum entre cidadãos divididos por compromissos mundividenciais con- correntes, a forma através da qual a pluralidade irredutível que é a matéria da comunidade política se estru- tura numa unidade estável. Assim, pode dizer-se que, ao passo que a lei democrática é na sua essência formal, no sentido de que o seu conteúdo varia de acordo com o juízo político que através dela se procura em cada momento expressar, a ordem constitucional é fundamentalmente material, porque radicada nas normas constitutivas de uma comunidade política de pessoas livres e iguais. Não admira, por isso mesmo, que o artigo 16.º da Declara- ção dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, porventura o mais emblemático dos documentos do constitucionalismo, tenha dado do conceito de constituição uma definição material: «A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem constituição.» Se é assim, se a vontade constituinte não é uma vontade arbitrária, mas vinculada pela sua natureza de vontade de constituir uma unidade política entre iguais, a compreensão do texto constitucional pres- supõe o conceito material de constituição do Estado de direito democrático e os princípios de interpretação por ele postulados. Por outras palavras, aquele conceito e estes princípios são condição da possibilidade de compreender o texto constitucional, não como uma lei de valor mais ou menos reforçado, mas como funda- mento da ordem jurídica da comunidade – o mesmo é dizer, como verdadeira e própria constituição. Os princípios são aqueles que a teoria da interpretação constitucional, reagindo precisamente contra a redução da constitucionalidade a uma espécie do género da legalidade, vem articulando, com variações de nomenclatura, há cerca de um século: (i) o princípio da unidade: a ordem constitucional que resulta da interpretação possui uma coerência axiológica intrínseca; (ii) o princípio da concordância: a ordem constitu- cional que resulta da interpretação estabelece uma proporção entre os valores, direitos e bens que se destina a salvaguardar; (iii) o princípio da integração: a ordem constitucional que resulta da interpretação integra a pluralidade, devolvendo ao método democrático a regulação do dissenso político; (iv) e o princípio da estabilidade: a ordem constitucional que resulta da interpretação preserva a força normativa intertemporal através da abertura ao devir histórico. São estes, por assim dizer, os «elementos» racionais ou lógicos da interpretação constitucional, os cami­ nhos de uma hermenêutica que imprime ao texto a dignidade de fonte de uma normatividade fundamental. 6. Ora, a interpretação que na decisão se faz do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição viola todos os princípios da interpretação constitucional. Vejamos. 6.1. Em primeiro lugar, viola o princípio da unidade, na medida em que dela resulta uma ordem cons­ titucional que concede níveis de tutela arbitrariamente diferenciados a realidades que relevam de radicais axiológicos comuns. É indefensável a ideia de que o acesso a dados de tráfego de uma comunicação consumada ou tentada entre pessoas constitui a priori uma lesão mais intensa da privacidade e da liberdade do que o acesso a dados de localização de equipamento, que permitem determinar os movimentos do titular, ou a dados de tráfego de internet , que permitem reconstruir a navegação online do visado. De resto, comparando estes últimos com os dados de tráfego de comunicações através de serviços online , o próprio Acórdão reconhece que a distinção é inviável, afirmando que, «face à semelhança dos valores e interesses afetados pelo tratamento não consen- tido de ambas as categorias de dados de internet e ao equivalente grau de danosidade que ele pode causar ao utilizador, a densidade de escrutínio a aplicar pela jurisdição constitucional à avaliação da escolha legislativa não [pode] ser menor em alguns deles.» E, no entanto, entende-se na mesma decisão que a ordem constitucional exclui categoricamente o acesso aos dados de tráfego de «comunicações intersubjetivas», por via do n.º 4 do artigo 34.º, ao mesmo tempo que permite genericamente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 35.º, desde que respeitados os limites gerais sobre a restrição de direitos fundamentais, o acesso aos demais dados pessoais − chegando-se ao ponto de afirmar

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