TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

119 acórdão n.º 464/19 Por um lado, dissentimos da interpretação que a maioria, reiterando o Acórdão n.º 403/15, faz do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, e do corolário que dela inevitavelmente retira: o de que a ordem constitucio- nal portuguesa concede uma tutela especial, definitiva e absoluta a todas as dimensões da autodeterminação comunicativa dos indivíduos fora do âmbito de um processo criminal, ao contrário do que sucede com a autodeterminação informativa, apesar de ambas relevarem de radicais axiológicos comuns – a reserva de intimidade da vida privada e o livre desenvolvimento da personalidade. Entendemos, por isso, que a aprecia- ção da constitucionalidade das medidas de acesso previstas nos artigos 3.º e 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017 passa, no essencial, por um juízo de proporcionalidade. Por outro lado, não cremos que os termos em que tal juízo de proporcionalidade deva ser feito variem substancialmente em função das categorias de dados abrangidas pelas normas sindicadas, nem aceitamos que seja exigível, viável, ou sequer desejável que o legislador «densifique» o regime de acesso aos dados de tráfego através da «identificação normativa da situação fáctica que está na origem do perigo» − seja qual for o exato sentido que se tenha pretendido dar a esta expressão − ou que o Estado careça de invocar para aquele efeito, mesmo perante a «incerteza de que se reveste o fenómeno do terrorismo», uma «situação de perigo (...) de verificação altamente provável». Pensamos ainda que a maioria, no seu juízo de inconstitucionalidade da dimensão do artigo 4.º que submeteu ao teste da proporcionalidade, não discerniu corretamente a natureza e a relevância do controlo prévio assegurado pela formação especial do Supremo Tribunal de Justiça, designa­ damente como garante da concordância prática entre bens constitucionais. A) Interpretação do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição 4. Segundo a decisão, «o n.º 4 do artigo 34.º da CRP conduz à inevitável conclusão de que o legislador constitucional resolveu explicitamente, no texto da Constituição, o sentido no qual devem ser resolvidas as eventuais colisões entre os valores constitucionalmente protegidos, e os correspetivos direitos fundamentais (...). [O] legislador constituinte retirou ao intérprete constitucional o espaço para encontrar (...) solução distinta para a operação de concordância prática em questão.» Acrescenta-se ainda que, «as ponderações entre direitos e valores constitucionais potencialmente em conflito foram já levadas a cabo pelo legislador constituinte», no sentido da prevalência absoluta da autodeterminação comunicativa sobre a tutela estatal de bens jurídicos fora do âmbito de um processo criminal pendente. Assim, a jurisdição constitucional, como «garante de um determinado parâmetro», deve respeitar a «operação de concordância prática realizada pelo legislador», a qual exprime uma «opção do poder constituinte democraticamente legitimado». Todo este raciocínio, no nosso juízo, se encontra inquinado pela incompreensão das distinções essen­ ciais entre constituição e lei e entre interpretação constitucional e interpretação da lei – precisamente aquelas diferenças que justificaram, na tradição constitucional europeia, a instituição de uma jurisdição especializada com características singulares para a administração da justiça constitucional. A maioria parte do pressuposto de que a Constituição é uma lei de valor reforçado que exprime os juízos ou acolhe as preferências políticas de um legislador com uma legitimidade robustecida. De onde se segue que a interpretação constitucional não se distingue essencialmente da interpretação da lei, uma vez que ambas se destinam a discernir um pensamento legislativo ou a determinar uma vontade política. E por ser comum a natureza da interpretação nos dois casos, torna-se evidente o recurso aos subsídios hermenêuticos destilados pela doutrina tradicional da interpretação das leis – para além do «elemento literal ou gramatical de interpretação (a letra da lei)», como se afirma na decisão, «[também o elemento] sistemático, o histórico e o teleológico». 5. Partimos de premissas bem diversas. A lei democrática exprime a vontade da maioria conjuntural legitimada nas urnas. Os atos legislativos não traduzem a unidade política dos cidadãos; ao invés, refletem o pluralismo das suas conceções sobre a sociedade justa e o bem comum, e o imperativo de que a controvérsia política que daí resulta seja arbitrada periodicamente através dos processos eleitorais da democracia representativa. A Constituição, pelo contrário,

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