TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

117 acórdão n.º 464/19 que do mesmo modo implicam uma restrição ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e da cor- respondência consagrado no artigo 34.º, sem que exista ainda, nessa fase, um processo criminal em sentido estrito, com arguidos constituídos e todas as suas garantias estabelecidas. Seria, aliás, absurdo fazer-se depender a admissibilidade da restrição de um conceito formal de processo criminal, cuja definição cabe ao legislador, quando, o que releva para efeitos constitucionais, é a materia­ lidade dos valores que a legitimam. Não é por acaso, aliás, que o n.º 4 do artigo 34.º ressalva “os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”, e não os casos em que já exista um processo criminal em sentido estrito. O que releva, então, é que a restrição se justifique pela salvaguarda dos mesmos valores con- stitucionais, e que as ingerências aos direitos fundamentais, além de se realizarem por procedimentos que ofereçam o mesmo nível de garantias que na fase instrutória prévia ao processo criminal, sejam adequadas e proporcionais aos fins visados. Ora, sendo inquestionável a identidade dos valores constitucionais que a Lei Orgânica n.º 4/2017 visa salvaguardar, na parte em que ela permite o acesso aos metadados para fins de prevenção criminal, é também inequívoco que as ingerências aos direitos fundamentais dos cidadãos nela previstas se realizam por procedi- mentos que oferecem o mesmo nível de garantias que oferece a fase instrutória prévia ao processo criminal, tendo em conta, nomeadamente, que o acesso aos dados é sujeito a controlo judicial e autorização prévia, reservada à competência de uma «formação das seções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, constituída pelos presidentes das secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções» (artigo 8.º da Lei Orgânica n.º 4/2017), e que o próprio Ministério Público pode intervir no processo (n.º 1 do artigo 1.º), podendo ainda, ou devendo mesmo, desencadear os processos criminais aplicáveis, dado que a autorização de acesso aos dados, a transmissão dos dados, o cancelamento de acesso aos dados, a sua destruição e a recolha de indícios da prática dos crimes de terrorismo e espionagem, são obrigatoriamente comunicados ao Procurador-Geral da República (n.º 2 do artigo 5.º, o n.º 1 do artigo 11.º, o n.º 4 do artigo 12.º e o artigo 13.º) «para os devidos efeitos». O que, tudo somado, constitui uma garantia mais do que suficiente da proporcionalidade e da adequação das medidas a adotar em cada caso concreto em que elas se revelarem necessárias. Pelas exatas mesmas razões, acompanho a decisão, na sua alínea a) , na parte em que ela não admite quaisquer ingerências nas comunicações privadas para fins que extravasam o âmbito estrito da prevenção criminal, expressamente ressalvado na parte final do preceito constitucional em análise. – Claudio Monteiro. DECLARAÇÃO DE VOTO Vencidos quanto à declaração de inconstitucionalidade, expressa na alínea c) da decisão, da norma cons­ tante do artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto. 1. A decisão repousa – parece-nos − em dois argumentos principais. O primeiro argumento é o de que os dados relativos a «comunicações intersubjetivas» − definidas como um processo comunicativo consumado ou tentado entre pessoas – são objeto de uma tutela constitucional reforçada em relação a dados pessoais que não respeitam a um processo comunicativo, como os dados de localização de equipamento, ou dados de tráfego que respeitam ao que no Acórdão se designa «comunicação» entre «pessoas e máquinas» ou «entre máquinas», como a navegação e a consulta de sítios na internet . Os dados que integram o primeiro universo – diz-se − relevam da autodeterminação comunicativa, subsumindo-se no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, que delimita através de uma «reserva absoluta de processo criminal» a exceção ao direito fundamental à inviolabilidade das comunicações. Os dados que integram o segundo universo, por outro lado, relevam da autodeterminação informativa, situada fora do perímetro de tutela constitucional reforçada dispensada por aquele preceito, valendo em relação a eles a autorização genérica de restrição contida no inciso final do n.º 4 do artigo 35.º da Constituição.

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