TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

107 acórdão n.º 464/19 Deste modo, o tratamento de dados subsequente a uma agressão inicial ao direito à autodeterminação informativa – in casu consubstanciada na conservação sistemática de dados sem uma razão específica – tem igualmente de ser apreciado e avaliado com referência à proteção assegurada por tal direito. Desde logo, e no que ora releva, a transmissão dos dados armazenados pelos prestadores de serviços de comunicações eletróni- cas a autoridades públicas e a possibilidade de acesso destas aos mesmos a fim de os utilizarem na prossecução das respetivas atribuições. Ou seja, as normas legais aplicáveis a cada um destes modos de tratamento de dados constituem, por isso, restrições legais do direito à autodeterminação informativa. Daí a necessidade de um cuidado acrescido na conformação do regime legal de acesso e de utilização dos dados em causa pelas autoridades competentes, nomeadamente quanto à definição das condições de acesso e ao estabelecimento de garantias de que os dados, uma vez acedidos, não sejam utilizados para fins diferentes daqueles que justifi- caram o armazenamento inicial nem fiquem definitivamente “perdidos” para o seu titular (no sentido de este perder o seu rasto e de ficar impossibilitado não só de pedir a sua eliminação, como de conhecer a utilização que dos mesmos é feita, por quem e para quê). O equilíbrio de tal regime, globalmente considerado, é que permite avaliar se as diversas agressões decor- rentes da transmissão às autoridades dos dados previamente armazenados pelos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas podem ser justificadas à luz do princípio da proporcionalidade. 3. Para além dos fundamentos que estão na base dos juízos positivos de inconstitucionalidade formu- lados no presente Acórdão, nomeadamente nas alíneas a) e c) do seu dispositivo, com os quais concordo, entendo que o regime de acesso aos dados de telecomunicações e de internet – dados esses cuja sensibilidade resulta do que na sequência do seu tratamento automatizado podem revelar sobre cada um e, principal- mente, de poderem ser utilizados na construção de perfis detalhados quanto à personalidade, à mobilidade, às interações e ao envolvimento sociais ou, no caso de entes coletivos, também aos respetivos procedimentos decisórios (cfr. a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão Vorratsdatenspeicherung , de 2 de março de 2010, a seguir referida como BVerfGE 125, 260 [318 f.], e o acórdão Tele 2 , n. os 98 a 100) – por parte dos oficiais de informações do SIS e do SIED consagrado nos artigos 3.º e 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017 é, todo ele – incluindo, pois, a parte referida na alínea b) do dispositivo –, desproporcionado e, por isso, incompatível com o direito à autodeterminação informativa pelas seguintes razões: i. A excessiva indeterminação normativa dos pressupostos de facto da competência para autorizar o acesso aos dados; ii. A omissão de previsão do dever de notificar as pessoas cujos dados são transmitidos aos serviços de informações do facto dessa transmissão ter sido realizada; iii. A omissão de previsão da garantia de que os dados pessoais acedidos pelos SIS e pelo SIED só possam ser transmitidos a terceiros, nomeadamente a serviços de Estados que não sejam membros da União Europeia ou a organizações internacionais, desde que se mostre assegurado um nível de proteção de dados equivalente àquele a que estão obrigados os serviços de informações nacionais. 4. O acesso de autoridades públicas a dados previamente armazenados tão sensíveis como os referidos na Lei Orgânica n.º 4/2017, devido à gravidade da agressão ao direito à autodeterminação informativa do titular dos dados que tal acesso representa, só pode ser legitimado pela eficácia da proteção preventiva rela- tivamente a bens constitucionalmente muito importantes. Em vista deste fim, que em si mesmo é legítimo, o acesso em causa, além de adequado e necessário para a consecução do mesmo, deve estar submetido a condições fixadas por lei formal tão precisa e clara que permita aos titulares dos dados em causa antecipar ou prever tal acesso – evitando-o, se assim o entenderem, por via da omissão dos comportamentos que podem constituir pressuposto da autorização de acesso – e que forneça às entidades competentes uma medida legal, um critério, para autorizarem o acesso e para o controlarem (cfr. o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, e, sobre a exigência de precisão ou determinabilidade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias enquanto condição necessária para aferir da respetiva proporcionalidade, vide os Acórdãos deste Tribunal

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