TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

106 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL eletrónicas [note-se que é justamente por estar em causa a iniciativa legislativa de um Estado-Membro cor- respondente a uma derrogação facultativa de normas de direito da União Europeia em domínio por este harmonizado, permitida pelo próprio direito da União, que o Tribunal Constitucional, apesar de as medidas legislativas nacionais em causa estarem abrangidas pela referida Diretiva – e, nessa medida, constituírem “aplicação de direito da União”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 51.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (cfr. a síntese formulada no acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 2018, Ministerio Fiscal , C– 207/16, EU:C:2018:788, n. os 34 a 37) –, não pôde deixar de exercer a sua competência em matéria de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, sem prejuízo da competência do Tribunal de Justiça relativamente à interpretação do direito da União que eventualmente possa ser considerada necessária para a apreciação e decisão sobre a aplicabilidade das normas nacionais em causa no âmbito do ordenamento português; cfr. o n.º 6, alínea b) , do Acórdão]. Os dados em causa, são, por determinação legal, recolhidos sistemática e generalizadamente e sem uma qualquer razão específica pelos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas e conservados durante o período de um ano (cfr. os artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho). Os titulares desses dados não podem opor-se a tal conservação (cfr. ibidem , o artigo 3.º, n.º 4). A razão de ser fundamental da imposição da obrigação dessa conservação de dados é possibilitar a posterior transmissão às autoridades de apenas alguns deles referentes a certas pessoas, tendo em vista a deteção e esclarecimento de situações indispensáveis à prevenção e repressão de uma criminalidade caracterizada pelo recurso cada vez mais frequente às comunicações eletrónicas, seja na fase de preparação, seja na fase de execução. As exigências relativas ao acesso a esta “reserva cautelar de dados” por parte das referidas autoridades – em rigor, não se trata de uma única reserva, pois cada fornecedor de serviços de comunicações eletrónicas está obrigado à conservação dos dados de todos os seus clientes – têm de assegurar que os dados acedidos só sejam utilizados para as finalidades que estiveram na base da justificação da obrigação legal de conservação dos dados de todos os utilizadores sem uma razão determinada. De outro modo, por causa do caráter geral, sistemático e indiscriminado daquele armazenamento, podem surgir, a jusante, intrusões consequentes no âmbito de proteção do direito à autodeterminação informativa de qualquer um. Na verdade, a falta de razões concretas para armazenar sistematicamente dados pessoais sem o consen- timento dos seus titulares durante um certo período de tempo, além de constituir per se uma ingerência no âmbito de proteção daquele direito, potencia o risco de novas ingerências não antecipáveis pelos titulares dos dados. Recorde-se que o efeito protetor dos direitos fundamentais referentes ao tratamento de dados não se circunscreve ao primeiro acesso, estendendo-se igualmente a todo o processamento subsequente dos mesmos dados, o qual frequentemente também reveste caráter intrusivo (cfr., por exemplo, e, respetivamente, as decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão Volkszählung , de 15 de dezembro de 1983, a seguir refe­ rida como BVerfGE 65, 1 [46], e Telekommunikationsüberwachung , de 14 de julho de 1999, a seguir referida como BVerfGE 100, 313 [359]). Na verdade, as disposições que conferem poderes às autoridades públicas para acederem e utilizarem dados pessoais no domínio das comunicações criam, em regra, uma “cadeia de diferentes agressões baseadas umas nas outras” [ verschiedene, aufeinander aufbauende Eingriffe ] (assim, vide a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão Zuordnung dynamischer IP-Adressen , de 24 de janeiro de 2012, a seguir referida como BVerfGE 130, 151 [184]). Acresce a proteção específica proporcionada pelo direito à autodeterminação informativa contra os perigos para o direito ao desenvolvimento da personali- dade, a liberdade geral de ação e o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar decorrentes do tratamento informatizado de dados (incluindo os dados publicamente acessíveis; cfr. as decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão Online-Durchsuchungen , de 27 de fevereiro de 2008, a seguir referida como BVerfGE 120, 378 [397 ff.], BVerfGE 130, 151 [183 f.] e KfZ-Kennzeichenkontrollen 2, de 18 de dezembro de 2018, a seguir referida como 1 BvR 142/15, Rn. 37-39; salientando igualmente a projeção de ingerências no mencionado direito à autodeterminação informativa sobre outros direitos fundamentais, vide o acórdão Tele 2, já citado no presente Acórdão, n. os 92 e 93).

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