TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

85 acórdão n.º 269/19 40. Daqui decorre que a norma que por sua natureza, ou pelo modo como é aplicada, obvie de forma intole- rável, arbitrária ou demasiado opressiva os referidos mínimos de certeza e segurança, terá de ser entendida como não consentida pela lei fundamental. 41. Pelo que já se expôs nas alegações, ficou inequivocamente demonstrado que a interpretação literal do art.º 1087.º do CC, afeta, de forma inadmissível, arbitrária e/ou demasiadamente onerosa, direitos e expectativas legi- timamente fundados da recorrente. 42. Constituindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder deposi- tar na ordem jurídica do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP. 43. Igualmente tem sido reconhecido por este Douto Tribunal Constitucional que as regras restritivas da liber- dade contratual e que visam garantir a subsistência do arrendamento, existem por estar em causa a garantia de um espaço vital de realização humana objeto de expressa tutela constitucional: o direito à habitação. 44. Na citada jurisprudência deste Douto Tribunal tem-se afirmado, em síntese que, “fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente), existe aí um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for neces- sário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir”. 45. Considerando estes parâmetros, a recorrente atuou de acordo com um comportamento social normal, res- peitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse criado um regime que conduzisse à cessação quase imediata de um contrato perfeitamente estabilizado, que tinha por inquilino uma mulher solitária de quase 60 anos de idade, apenas por não ter sido respeitado o mero formalismo de depositar a indemnização em simultâneo com as rendas vencidas, mesmo que não constando do pedido. 46. Questiona-se uma decisão judicial que, cegamente, impõe a uma pessoa nas condições da recorrente, que abandone o locado no prazo de UM MÊS. 47. Quando o tribunal recorrido podia e devia ter fixado um prazo mais alargado para a desocupação do locado, no mínimo de seis meses; só desse modo seria dada a possibilidade à recorrente de encetar as diligências necessárias e adequadas para a busca de uma outra habitação. 48. Por isso que o art.º 1087.º do Código Civil nunca pode ser interpretado no sentido de que a desocupação deve ocorrer no prazo de um mês, mas sim de que esse é o prazo mínimo a fixar, sem prejuízo de o julgador, perante as circunstâncias concretas a apreciar, fixar um outro prazo mais alargado. 49. Pois que, como é de todos sabido, o desconhecimento dos arrendatários com condições de vida semelhantes às da recorrente ou até piores condições, os colocam numa situação de absoluta fragilidade, jogando-se então a apreciação da proporcionalidade da solução encontrada. 50. O que tudo nos conduz, claramente, à constatação da desproporção entre o pretendido e o concedido. Ou seja, a incidência do atual regime sobre relações jurídicas constituídas no passado, designadamente, a fixação do prazo de desocupação, deve ser alvo de particular ponderação de interesses contrapostos, constituídos, por um lado, pelas expectativas dos arrendatários na continuidade do quadro legislativo vigente à data em que firmaram os seus contratos, e, por outro, pelas razões de interesse dos senhorios de melhor rentabilizarem as suas propriedades. 51. Especial relevância para a lesão do interesse particular legítimo, na medida em que esta constitua o fim do contrato de arrendamento existente, o que representa a fratura com toda uma vida anterior. 52. Afigura-se pois que no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse da arrendatária (que fica sem habitação), com o interesse dos senhorios, que podem ser alcançados com o recebimento das rendas estabelecidas e seguramente também, com a desocupação do arrendado, ainda que num horizonte temporal mais alargado. 53. No caso dos autos, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança associado às regras de interpretação da lei, designadamente a que prevê que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art.º

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