TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
55 acórdão n.º 260/19 Naturalmente, o preenchimento do tipo pressupõe a inexistência de consentimento válido (o consen- timento válido exclui a ilicitude do tipo) – daqui que não acompanhamos o juízo de inconstitucionalidade defendida pelo arguido em sede de alegações. No presente caso, o consentimento prestado (traduzido na não oposição) não é válido (artigo 38.º, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal), posto que não traduz uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, uma vez que as pacientes pretendiam ser observadas unicamente com vista ao seu tratamento e essa não oposição (com vista ao seu tratamento) foi usada para, sob a égide da prática de um ato médico, este praticar os atos sexuais que pretendeu. Isto é, em suma, um consentimento viciado neste quadro factual equivale normativamente a uma falta de consentimento, pois não está dirigido ao ato que na realidade o agente pratica. Isto é no domínio desta relação médico-paciente que os factos bem retratam, não seria expectável que houvesse um consentimento (isto é, um não constrangimento) para a prática destes atos do foro sexual que, conforme referimos não se mostram inscritos num verdadeiro ato médico. Assim, preenche o tipo legal de crime previsto no artigo 164.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, a conduta do agente que, tirando partido da circunstância de ser médico de profissão e de se encontrar no exercício das suas funções em estabelecimento hospitalar (sabendo que as ofendidas eram suas pacientes no mencionado estabeleci- mento hospitalar e que, ali, se encontravam aos seus cuidados, para observação e para receberem os adequados tratamento e atendimento hospitalares, em função da sintomatologia que apresentavam) introduz partes do corpo (os dedos, no caso sub judice), se escuda em atos médicos com o propósito de manter comportamentos de natureza sexual, sabendo que aquelas não desejavam e, não obstante disso ter conhecimento, leva por diante a satisfação dos seus intentos libidinosos .» […] No caso dos autos, o constrangimento acontece por força da qualidade em que o arguido atuou, revestida da auctoritas e merecedora de confiança que deixa as vítimas sem capacidade de reação, custando-lhes admitir que a sua atuação representa um abuso da profissão. […]” (itálicos acrescentados). A noção de constrangimento, em geral, como justamente se assinala na decisão recorrida, não é aberta ao ponto de qualquer destinatário de normal compreensão deixar de compreender o que nela pode ir factualmente implicado, ou seja, a conduta proibida. Acima de tudo, ela apresenta-se suficientemente definida para incluir, sem qualquer esforço interpretativo, a conduta de quem «se escuda em atos médicos com o propósito de manter comportamentos de natureza sexual, sabendo que [as pessoas visadas] não [os] desejavam», resultando o constran- gimento de «[deixar] as vítimas sem capacidade de reação, custando-lhes admitir que a sua atuação representa um abuso da profissão» (sentido adotado na decisão recorrida). Não cabendo ao Tribunal Constitucional (re)apreciar se os factos que preencheram a norma foram estes ou outros, mas apenas – como vimos – aferir se a letra da norma comporta o sentido da aplicação normativa, a resposta é inequivocamente positiva: a previsão «quem, por meio não compreendido no número anterior [ou seja, qualquer meio que não se reconduza a violência, ameaça grave, ou não resulte de, para esse fim, ter tornado outrem incons- ciente ou posto na impossibilidade de resistir], constranger outra pessoa a sofrer introdução vaginal ou anal de par- tes do corpo ou objetos» é suficientemente clara, discernível, objetiva, definida e certa para incluir, sem equívocos, a interpretação segundo a qual pratica o crime correspondente quem age conforme descrito no parágrafo anterior. Não ocorre, pois, violação do princípio contido no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição. […]”.
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