TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

48 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Não feriria a Constituição se o legislador ordinário optasse por uma redação mais próxima da Convenção de Istambul (tal como estava previsto no Projeto do BE), no sentido de dizer expressamente ‘sem o consentimento’ da vítima, à semelhança do que faz, e bem, noutros crimes de execução livre. O âmbito da incriminação, assim tão incertamente definido, é de tal modo amplo que poderá abranger situa- ções de vida muito heterogéneas, e às quais não será legítimo associar um único e indiferenciado juízo de desvalor jurídico. Criminalizar ‘quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa.’ significa que se pune com base numa norma de tal modo imperfeitamente desenhada que a partir dela se não consegue vislumbrar qual seja verdadeiramente a ‘conduta’ humana objeto da censura jurídico-penal. É com ou sem consentimento? Por outro lado, o artigo 164.º, n.º 2, al. b) , do Código Penal, não cumpre a exigência que decorre do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, segundo a qual só será constitucionalmente legítima a medida de política criminal que, traduzindo-se na instituição de uma nova incriminação, vise a preservação de um “valor social” cuja tutela se mostre dotada de dignidade jurídico-penal. Numa incriminação de tal modo lata que pode englobar situações de vida heterogéneas, às quais não é legítimo associar uma única e indiferenciada reação, é logicamente impossível que se divise por que motivo resolveu o legislador unir a heterogeneidade, desencadeando para ela a intervenção penal que, em Estado de Direito, deve constituir sempre um recurso de última instância. O legislador de 2015, ao estabelecer que o constrangimento pode ser ‘por qualquer meio não compreendido no número anterior’, entendeu conferir ao ‘bem jurídico’ protegido uma particular intensidade axiológica, e assim, à necessidade da sua tutela, uma particular dignidade. A especial refração que esse bem teria no sistema de valores da Constituição – por se concretizar em exigências de preservação do Estado de direito democrático – assim o demonstraria. No entanto, o legislador não cumpre no artigo 164.º, n.º 2, do Código Penal, o dever que sobre ele impende de identificar com a máxima precisão que a natureza da linguagem consentir o facto voluntário que considera punível: a descrição da infração criminal, deste modo feita pelo legislador, não cumpre na verdade as exigências decorrentes do prin- cípio constitucional de lex certa, textualmente sediado no n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa. É que, desde logo, não cumpre a função precípua de garantia que o princípio da legalidade penal, nas vestes de tipicidade, prossegue – a de tornar cognoscível o sentido da proibição penal, de modo a que os cidadãos com ela se possam conformar ou por ela se possam orientar. A norma incriminadora não define com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, logo é constitu- cionalmente ilegítima (a questão nunca se colocou antes de 2015 porque os outros meios tinham de resultar dum abuso de autoridade, que agora deixou de existir). Tal significa que, logo na formulação do tipo criminal e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), entendido, na sua dimensão substantiva, enquanto vínculo do próprio legislador penal. Com a alteração de 2015 introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, passou a subsumir-se no tipo legal, nomeadamente no n.º 2, todo o ato que não comporte violência, ameaça grave ou tenha tornado inconsciente a vítima ou colocado na impossibilidade de resistir, mas que seja apto a constranger a vítima. Antes, ‘pelos meios não compreendidos no número anterior’ dependia de relações familiares, profissionais ou hierárquicas. Enquanto o n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal, não for alterado e dele passar a constar “sem o seu consentimento (da vítima)” os tribunais não podem aplicá-la. É que temos um absurdo: a vítima pode então consentir constrangidamente num relacionamento com o agressor (consentimento este, viciado e, como tal, nulo) não por violência ou ameaça grave, mas por outros meios ? O n.º 2 do artigo 164.º, na redação que lhe foi dada pela Lei de 2015, é inconstitucional e não vai de encontro ao estabelecido na Convenção de Istambul, nem satisfaz os seus propósitos. Queremos referir-nos às situações de dissentimento e consentimento viciado (constrangido) da vítima face ao ato sexual imposto. O constrangimento não pode ficar preso ao conceito de violência, ameaça grave e colocação na impossibilidade de resistir, que são as formas previstas já no n.º 1 do artigo 164.º. Ou a lei diz quais são os meios os meios e as situações em

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