TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

47 acórdão n.º 260/19 Se na versão original do Código Penal, em 1982, os crimes sexuais ainda eram considerados como crimes contra os ‘fundamentos ético-sociais da vida social’, relacionados com ‘os sentimentos gerais de moralidade sexual’, com a reforma de 1995 passaram a ser inseridos nos crimes contra as pessoas, mais especificamente, ‘contra a liber- dade e a autodeterminação sexual’. A tutela da moralidade sexual deu lugar à tutela da liberdade sexual, quer na sua vertente positiva – liberdade para as pessoas se relacionarem sexualmente de acordo com a sua vontade livre – quer negativa – liberdade para recusar relacionamentos sexuais. Esta liberdade sexual de outra pessoa, enquanto bem jurídico a tutelar, está em sintonia com as valorações de uma sociedade democrática e pluralista, espelhadas na Constituição da República Portuguesa. A saber, a intervenção penal, atentos os princípios da dignidade e necessidade penal (em conformidade com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), não pode fundar-se na tutela de uma determinada moral sexual, mas sim na proteção de bens jurídicos fundamentais, como é a liberdade e autodeterminação sexual, ínsitos no direito à integridade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade e tendo como fundamento último a dignidade da pessoa humana (de acordo com os artigos 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 1.º da Constituição). Esta conceção está ainda em sintonia com os instrumentos internacionais, mormente com a Convenção de Istambul, que impõe a criminalização de condutas intencionais que lesem esta liberdade sexual. E foi o cumprimento do disposto na Convenção de Istambul que impôs a necessidade de uma alteração legal que conduzisse a uma clara tutela da liberdade sexual em toda a sua extensão, tendo em consideração a importância do bem jurídico liberdade sexual (que encontra a sua fonte em valores e princípios constitucionais) e as imposições da Convenção de Istambul. O artigo 36.º, n.º 1, da Convenção de Istambul estipula que “os Estados deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem intencionalmente a) Praticar a penetração vaginal, anal ou oral, de natureza sexual, de quaisquer partes do corpo ou objetos no corpo de outra pessoa, sem consentimento desta última; b) Praticar outros atos de natureza sexual não consentidos com uma pessoa; c) Levar outra pessoa a praticar atos de natureza sexual não consentidos com terceiro. O n.º 2 afirma que o consentimento deve ser dado voluntariamente, por vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes e o n.º 3 denota que a criminalização prevista no n.º 1 deve ser aplicada atos cometidos contra atuais ou ex-cônjuges ou parceiros”. Por seu turno, a proposta legislativa n.º 522/XII/3.ª, do BE, que acompanhava o mesmo sentido da Conven- ção, avaliando o crime de violação pelo “não consentimento” e indicando, nas suas sucessivas alíneas, várias formas de agravação, entre elas, os meios típicos que atualmente continuam a preencher o n.º 1. Dito isto: Na redação do n.º 2 do artigo 164.º do Código Penal, só se sabe que o constrangimento tem que ser levado a cabo por meio não compreendido no n.º 1 do preceito, vale dizer, por violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir. Diz Figueiredo Dias que este número 2, como variante do n.º 1, não pode querer proteger – sob pena de eventual inconstitucionalidade material – v. g. uma personalidade da pretensa vítima anormalmente temerosa, assustadiça, con- fabuladora ou mitómana. A exigência que decorre do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, segundo o qual «ninguém deve ser sentenciado senão em virtude de lei […] que declare punível a ação ou omissão […]» fica assim por cumprir. Perante uma tal deficiência na construção legislativa do tipo, fica-se logo por esse motivo sem saber em que é que consiste, com o mínimo de determinação exigível, o facto voluntário punível, de modo a que com a previsão penal se possam harmonizar os comportamentos dos cidadãos. É certo que é um crime de execução livre, mas onde está a ‘falta de consentimento’? No crime de ‘violação de domicílio’, previsto no artigo 190.º, n.º 1, do Código Penal, que também é um crime de execução livre, diz- -se ‘quem sem consentimento se introduzir’. Temos o artigo 190.º, que protege a integridade do domicílio, com a expressão ‘sem consentimento’; logo, uma norma que protege um bem eminentemente pessoal (como o artigo 164.º) não conter a mesma expressão viola a Constituição.

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