TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

444 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Nenhuma destas dimensões é atingida pela interpretação normativa aqui em apreciação, que se reporta ao regime específico da transferência do direito real de propriedade, em caso de aquisição financiada por contrato de mútuo, aspeto que se situa no âmbito da liberdade conformadora do legislador ordinário. Conclui-se, pelo exposto, pela inexistência de violação do artigo 62 . º da Constituição. No tocante à invocada violação dos princípio da separação de poderes e da segurança jurídica, fundada na alegada circunstância de o tribunal a quo ter criado uma norma nova, adotando uma interpretação sem correspondência mínima na literalidade da lei, salienta-se que a questão que, verdadeiramente, se coloca é de legalidade e não de inconstitucionalidade direta, não estando, nessa dimensão de legalidade, incluída na competência do Tribunal Constitucional, por não caber a este Tribunal “resolver divergências jurídicas ou jurisprudenciais ocorridas a propósito dos preceitos de direito ordinário, decidindo acerca da sua adequação e conformidade aos princípios interpretativos vigentes no sistema jurídico” (C. Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional , Almedina, 2010, p. 38). A apreciação da correção do processo hermenêutico seguido pelo tribunal a quo, tendente a determinar o sentido de determinada norma, e a possibilidade da validação do resultado por referência às técnicas interpre- tativas previstas no Código Civil, estará, em princípio, excluída da sindicância do Tribunal Constitucional. Porém, pode ler-se, no Acórdão n . º 395/03, que “o Tribunal Constitucional não pode deixar de contro- lar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica ou interpretação extensiva, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativas (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na atividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativas, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.” Será assim, nos domí- nios do direito criminal e do direito fiscal, por imposição dos artigos 29 . º, n. os 1 e 3, e 102 . º, n. os 2 e 3, ambos da Constituição. No mesmo sentido, refere-se, no Acórdão n . º 610/16, que se “[a]dmite[ ] que o Tribunal Constitucio- nal, verificados determinados pressupostos respeitantes à natureza normativa do recurso de constituciona- lidade, possa controlar o resultado do processo de interpretação desenvolvido pelos tribunais, em domínios normativos em que é a própria Constituição a vedar o recurso à analogia, como meio de suprimento de lacunas legais, ou determinadas formas de interpretação, como paradigmaticamente sucede no domínio do direito criminal e do direito fiscal (artigos 29 . º, n . os 1 e 3, e 102 . º, n . os  2 e 3, da Constituição; neste sentido, entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 395/03 e 441/12; admitindo a invocação do princí- pio da legalidade enquanto parâmetro de fiscalização da constitucionalidade aplicável no âmbito do direito processual penal, cfr. também Acórdão n . º 324/13). Não decorrendo da Constituição limitações materiais dessa natureza, como é o caso, não pode o Tribunal Constitucional verificar se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, sob pena de se converter em última instância de recurso, não apenas em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221 . º da Constituição), mas na fixação do próprio sentido decisivo da lei, o que lhe está claramente vedado, enquanto órgão a quem apenas compete fiscalizar a conformidade constitucional das normas de direito ordinário, resultem elas diretamente da lei ou de certa interpretação da lei.” De facto, “não decorrem da Constituição, nesse específico domínio normativo, específicas limitações em matéria de interpretação ou integração, pelo que, em abstrato, é lícito ao julgador aplicar os critérios legalmente previstos em ordem a determinar o sentido decisivo da lei ou, na ausência de previsão legal, a norma que deve usar como critério de julgamento (artigos 9 . º e 10 . º do Código Civil), não cabendo ao Tri- bunal Constitucional – sublinhe-se de novo – controlar o uso que as instâncias fazem dos instrumentos que a lei lhes concede para o efeito, considerando, desde logo, o irreprimível espaço de autonomia que a própria Constituição, em regra, reconhece aos tribunais na interpretação do direito ordinário que são chamados a aplicar (artigo 203 . º da Constituição).”

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