TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

443 acórdão n.º 398/19 4. As recorridas optaram por não apresentar alegações. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentos 5. O objeto do presente recurso é identificado pela recorrente como correspondendo à interpretação do artigo 409 . º do Código Civil, no sentido de que, numa visão atualista, a reserva de propriedade poderá ser feita a favor do mutuante não alienante. Invoca a recorrente que tal sentido interpretativo é inconstitucional, por violar os artigos 2 . º, 3 . º e 62 . º, todos da Constituição da República Portuguesa. Para fundamentar o seu juízo de inconstitucionalidade, defende, em síntese, que a interpretação adotada pelo tribunal a quo não encontra um mínimo de correspondência na letra do preceito de que é extraída, traduzindo-se na criação de uma nova norma, restritiva do direito de propriedade, que viola o princípio da separação de poderes e atenta contra a certeza e segurança jurídica. Mais argumenta que as restrições ao direito de propriedade se encontram sujeitas a numerus clausus , de acordo com o artigo 1306 . º do Código Civil, consubstanciando o reconhecimento da validade de uma cláusula de reserva de propriedade a favor de quem não é alienante, mas apenas mutuante, uma restrição de um direito real vedada pela referida norma civilística e pelo artigo 62 . º da Constituição. Quanto a este último aspeto, cumpre salientar que o legislador constitucional, consagrando o direito à propriedade privada como um direito fundamental, não fez coincidir o conceito com o direito real de propriedade. Como pode ler-se no Acórdão n . º 491/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt , sítio da internet onde podem ser encontrados os restantes arestos doravante citados), “o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os “direitos sociais” – incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades (na doutrina, no sen- tido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559”. A propriedade, como bem jurídico constitucionalmente garantido, apresenta-se como “manifestação de um certo espaço de autonomia e de liberdade da pessoa e constitui meio indispensável para a prossecução de projetos de vida livremente traçados e responsavelmente realizados” (Maria Lúcia Amaral, op cit., p. 540). Porém, como alerta a mesma Autora, analisando a doutrina maioritária, traduz-se numa “liberdade enfra- quecida, porque sujeita a limitações imanentes que permitem restrições superiores às que são impostas às demais liberdades”; “as restrições ao conteúdo deste direito serão sempre atípicas e nunca excecionais, porque autorizadas pela cláusula geral “nos termos da Constituição” e impostas pelos incontáveis “limites imanentes” ( idem , ibidem , p. 544). Neste contexto compreensivo, resulta claro que a nossa Constituição não define um modelo de aqui- sição do direito real de propriedade, nem conforma o seu regime específico na relação com outros direitos, não sendo possível extrair das normas da Lei Fundamental qualquer imposição da regra de que o direito real de propriedade se transfira por mero efeito do contrato ou qualquer densificação modeladora das relações entre o alienante, o adquirente e o mutuante que financia a aquisição. Todos esses aspetos são confiados ao legislador ordinário, que goza de uma ampla margem de conformação, com a limitação de que não pode “despoj[ar este direito] de um conteúdo mínimo de faculdades sem o qual o direito subjetivo ficaria aniqui- lado e a própria garantia de instituto perderia substância”, como se lê no Acórdão n . º 148/05. Ainda nos termos do mesmo aresto, a Constituição garante três componentes do direito consagrado no artigo 62 . º: “ (i) o direito de aceder à propriedade; (ii) o direito de não ser arbitrariamente privado da pro- priedade; (iii) o direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa .”

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