TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

406 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL socialização; mas não será difícil pôr a descoberto outras dimensões ou efeitos que, diferentemente, encon- trem já mais próximo do entardecer da vida o tempo certo para a sua manifestação. Seja ou não assim, uma coisa sobra em qualquer caso líquida: os valores ou interesses pessoalíssimos que verdadeiramente dão sentido à relação de paternidade e à respetiva ação de investigação podem aflorar e atualizar-se, na plenitude das suas implicações e reivindicações legítimas, em qualquer fase da vida, situada algures entre o nascimento e o ocaso. Do ponto de vista destes valores ou interesses a interposição da ação de investigação de paternidade chega sempre na hora certa e em tempo útil. Nunca cedo de mais; nunca tarde de mais. Neste como noutros domínios dos direitos fundamentais e acolhendo-me à lição de M. Scheler, há de prestar-se tributo à expressão da incondicionada e improgramada liberdade do homem, à procura de um “mundo em que ganhe configuração e rosto e objetivamente se represente como hermeneuta prático de si mesmo” (cfr. M. Baptista Pereira, “Filosofia e crise atual de sentido”, in Tradição e Crise , I, 1986, p. 56). Não sobrando legitimidade a ninguém – nem aos terceiros, de alguma forma afetados pelo reconhecimento da paternidade e, menos ainda, ao Estado – para fazer valer a frustração das suas expectativas e responder com espanto, menos ainda com censura, de entono mais ou menos punitivo, ao momento escolhido pelo inves- tigante para atualizar esta sua pessoalíssima dimensão. Uma censura de que o acórdão votado parece fazer-se eco ao sustentar: “O que a lei não consente – e a Constituição manifestamente não tutela – é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo”. A este propósito, não fará outrossim sentido nem sobrará legitimidade para o cuidado e solicitude paternalista do legislador. A justificar que este aposte em contrariar a “inércia” do interessado, impedindo que este venha a propor a ação num momento que “pode objetivamente comprometer a constituição atempada da relação jurídica de filiação”.  Importa, de resto, sublinhar a propósito que a interposição mais tardia da ação de paternidade não deve ser levada, sem mais e de forma indiferenciada, à conta de motivações necessariamente egoístas e censuráveis. Esta é, na verdade, uma decisão que pode ser exclusivamente ditada por razões do mais límpido, generoso e altruísta despojamento. Como nas constelações em que o investigante se encontra ligado por intensos senti- mentos de afeto e gratidão à mãe e a seu companheiro, que lhe propiciaram um salutar ambiente familiar e lhe prodigalizaram afetos e assistência material e moral. E que, embora não renunciando à busca e construção da sua identidade, difere a propositura da ação da investigação para mais tarde. Precisamente para um tempo em que as vicissitudes – no extremo, a morte de um ou de ambos – entretanto ocorridas nas vidas e na rela- ção da mãe e do companheiro reduzam drasticamente a danosidade e os custos (em termos de privacidade/ intimidade, paz jurídica, confiança, etc.) desencadeados pela investigação. Para além disso, não pode excluir- -se a possibilidade de a demanda tardia do conhecimento e reconhecimento da paternidade(-filiação) ser ditada pelo propósito de saldar dívidas de afeto e solicitude do filho em relação ao pai. Isto é, a possibilidade de o chamamento ou apelo da paternidade(-filiação) ficar tão-só a dever-se a um impulso – tão nobre como louvável – de responder à solidão e abandono do pai. É que, se calhar, Hamlet tem razão quando acredita que “há mais coisas no céu e na terra do que nós sonhamos na nossa filosofia”. 4. Resulta assim claro que a identidade pessoal, valor pessoalíssimo de eminente dignidade que pontifica no horizonte teleológico do direito ao reconhecimento da paternidade, não vê a sua densidade e peso axiológi- cos progressivamente esbatidos e reduzidos pelo decurso do tempo. Um tópico em que me afasto do enten- dimento sufragado pela maioria, que vai no sentido contrário. Uma visão das coisas, a da maioria, que resulta numa drástica e injustificada rarefação da densidade axiológica dos valores subjacentes ao direito ao reconheci- mento da paternidade e, reflexamente, na redução da pertinente área de tutela. E, por vias disso, a desembocar na ideia de que, ultrapassada a fase em que mais fortemente se faz sentir a carência de assistência, educação, saúde, apenas sobrarão atrás da investigação da paternidade interesses “essencialmente patrimoniais”. E isto por- quanto, “nesta fase já não é possível dar satisfação aos bens jurídicos pessoais tutelados por aqueles direitos que, por isso, viram o seu conteúdo original irremediavelmente comprimido, não por força de qualquer norma, mas por efeito da mera passagem do tempo. Pura e simplesmente, deixou de fazer sentido falar em proteção, saúde e educação; a assistência tutelável por meio dos tribunais é, agora, exclusivamente patrimonial”.

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