TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

405 acórdão n.º 394/19 sua compreensão axiológica e no seu halo de proteção normativa o direito ao conhecimento da paternidade. Noutra direção mas intimamente imbricado, o direito à historicidade pessoal e à verdade pessoal. O que tem como reverso a afirmação de que a ação de investigação de paternidade está primacialmente preordenada à formação, ao reconhecimento, ao reforço e à proteção do direito à identidade pessoal. Um discurso normativo que corre em consonância e sintonia com a reflexão filosófico-antropológica, centrada sobre o sentido do conceito de pessoa, tal como ela se foi afirmando e decantando ao longo dos séculos na civilização ocidental. Tal como hoje a conhecemos e reconhecemos, a ideia de pessoa, que mer- gulha as raízes na Grécia clássica, sofreu um grande impulso do cristianismo e viria a conhecer um decisivo momento de consagração no iluminismo. Se, no pensamento kantiano, o que definia e singularizava a pessoa era a sua autonomia, em que radicava a dignidade humana, já nos nossos dias e pela voz de RICOUER se viria a sustentar que é a identidade que verdadeiramente suporta a autonomia, já que, segundo o filósofo, sem identidade não pode falar-se de autonomia. Acrescentando e precisando que só tem identidade quem “pode contar a história da sua vida e de a reunir numa narrativa inteligível e aceitável” (cfr. M. L. Portocar- rero, Revista Filosófica de Coimbra , 2013, pp. 407 e seguintes). Lugar incontornável e insuprível da história individual e momento nuclear da identidade pessoal, a rela- ção de paternidade(-filiação) condiciona decisivamente o destino de cada um e imprime cunho a dimensões essenciais do modo de ser pessoa. Pelo que é e pelos efeitos que irradia, a paternidade (-filiação) constitui-se numa constante antropológica ou, se se quiser, numa dimensão ontológica da ipseidade numenal que se esconde atrás da máscara fenomenológica e relacional com que a pessoa se apresenta aos outros e se relaciona com eles. Tudo, de resto, permitindo antecipar que os interesses e valores associados à identidade/historicidade/ paternidade tenderão a ver cada vez mais exposto e reforçado o seu peso axiológico e a sua relevância prática. Isto à vista das transformações, tão profundas como aceleradas – e, ao que tudo indica, irreversíveis – regista- das no plano social, com impacto particularmente dirimente sobre a família e as suas formas tradicionais de legitimação. Do mesmo passo que vê multiplicarem-se as suas expressões fenomenológicas, a família perde claramente em estabilidade tanto no plano intrínseco como extrínseco, aparecendo cada vez menos como referente de estabilidade para os seus membros e particularmente os filhos. As pessoas passam de forma cada vez mais apressada e ligeira pelo espaço e pela “cultura” da família, assumindo frequentemente novos papéis, novos laços, novas relações, em síntese, novas famílias. Cada vez com maior frequência e “normalidade”, as pessoas amanhecem fora da que fora na véspera a sua família, integradas numa nova família. Neste ambiente desertificado, a pessoa tende a migrar para dentro de si mesma, a entrincheirar-se na sua identidade/história/ paternidade e a buscar aí as indispensáveis referências de sentido e suporte. 3. Como uma dimensão ontológica da pessoa, a relação de paternidade – e reflexamente a investigação de paternidade – subsiste e persiste imune à erosão do tempo, não valendo em relação a ela a intuição do poeta, tempus edax rerum (Ovídio). Como resulta linear, o que aqui está em causa é o “conhecimento da paternidade biológica”, que tem como reflexo o “estabelecimento do respetivo vínculo jurídico”. Esta é, assim, uma área problemática em que o discurso normativo de dever ser (A deve ser tratado como filho de B) corre paralelo e indissociavelmente vinculado a um discurso ontológico de ser (A é filho de B). A “camada” ôntica do ser normativo surge aqui como reverso da “camada” ôntica do ser biológico. E como esta não está sujeita à erosão do tempo (A é filho de B em todos os tempos da sua vida), o mesmo deve valer para aquela (A deve poder ser tratado como filho de B em todos os tempos da sua vida). Do ponto de vista dos interesses e valores nucleares e pessoalíssimos que primacialmente se jogam na relação de paternidade, é relativamente indiferente a escolha do momento – sc., da fase em que a vida humana se desdobra – escolhido para a sua atualização e validação jurídica. Não podendo fundadamente sustentar-se que o reconhecimento judicial da paternidade se reveste de maior importância nos primeiros estádios da vida do que nas etapas finais. Não se ignora que há decorrências ou projeções da paternidade que podem assumir maior relevo e peso nas fases iniciais, onde, no essencial, se joga a subsistência, a educação, a formação da identidade, a

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