TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
399 acórdão n.º 394/19 exige comunidade de afetos com o de cujus para que se produzam os efeitos sucessórios, sendo comum, nas famílias fundadas no casamento, que alguns filhos, que nunca se interessaram pelos seus pais nem os auxi liaram na velhice, venham exigir, após a morte, a sua herança, tendo os requisitos de indignidade sucessória pressupostos muito apertados que não abrangem estas situações. Por maioria de razão, num contexto em que não foi o filho que se afastou do pretenso pai, mas, pelo contrário, este que o abandonou ou, nos casos de posse de estado (tratamento como filho), decidiu não o perfilhar, recusando assumir o estatuto jurídico de pai, não pode o juiz constitucional, na aplicação do princípio da proibição da insuficiência da tutela dos direitos fundamentais, censurar uma eventual busca – impossível de sindicar e que não pode presumir- -se – pelos investigantes dos efeitos sucessórios da filiação. Estes efeitos são os únicos de que afinal poderão beneficiar, dado que durante a infância e juventude, o seu progenitor não assumiu, em regra, qualquer responsabilidade familiar nem patrimonial. Os alimentos e os efeitos sucessórios são os principais esteios das relações familiares, sobretudo, das relações de filiação, e não se podem reduzir a meras questões patrimoniais, pois constituem ainda uma forma de responsabilidade pela procriação. Ora, um filho, que, durante a meno- ridade, se viu privado, em relação ao investigado, seu pretenso pai, do apoio financeiro e afetivo que os pais costumam proporcionar, resta-lhe apenas a obtenção do seu direito à herança, o qual, mesmo que exercido tardiamente, não se pode considerar abusivo, num contexto legal em que os restantes herdeiros o podem exercer a todo o tempo, nos termos do artigo 2075 . º do Código Civil, e sem que tenha por base qualquer relação afetiva com o progenitor. Por outro lado, os conflitos sucessórios entre os herdeiros do progenitor, nascidos na família conjugal do investigado, e o investigante, que estabelece tardiamente a paternidade, ten- dem a perder qualquer eficácia prática no futuro, em que se prevê que o direito sucessório sofra profundas mutações provocadas pelo aumento da esperança de vida, que cria a necessidade de criar critérios distintos dos atuais na partilha do património do de cujus, beneficiando a posição sucessória dos filhos que prestaram apoio económico e cuidados aos pais na velhice e na doença. 6. Em relação à tutela da intimidade da vida privada do investigado e da família entretanto constituída, a quem a revelação da existência de um filho fora do casamento pode causar danos de constrangimento e exposição, deve afirmar-se que este argumento foi relevante à luz das sociedades conservadoras que queriam proteger a integridade do património patrimonial, preservando a ideia de que a sexualidade só era vivida dentro do casamento, mas tem que perder hoje o seu peso em sociedades com costumes e valores distintos. Tanto mais que, do lado do direito do investigante, milita também o interesse público do Estado no estabe- lecimento da filiação. Por outro lado, o direito à identidade pessoal reveste-se de uma dimensão mais pro- funda e estrutural para a construção da personalidade do indivíduo, e da sua vida relacional e social, do que o interesse do investigado na proteção da sua privacidade, interesse que, ao contrário da necessidade do investi- gante conhecer a sua história e raízes, diminui de intensidade com a passagem do tempo e quando se reporta a factos antigos. Por outro lado, como se afirmou no Acórdão n . º 488/18, à luz da consciência social atual, a responsabilidade pela procriação prevalece sobre a privacidade do investigado, até porque não existe um direito nem sequer um interesse juridicamente tutelável deste, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato. Na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza os progenitores biológicos pela procriação, e tem um interesse de ordem pública em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, para além da maioridade dos filhos e independentemente de qual- quer relação afetiva entre pais e filhos, a fim de evitar a possibilidade de relações de consanguinidade e para permitir a observância do sistema de impedimentos matrimoniais. Por último, após o Tribunal Constitucional ter reconhecido à pessoa concebida por PMA, que não tem o estatuto jurídico de filho, o direito a conhecer a identidade civil do dador, atribuindo a este direito uma tutela “absolutizada”, ficam substancialmente enfraquecidos os argumentos para negar o mesmo direito aos filhos sem paternidade estabelecida, que venham a intentar uma ação de investigação da paternidade após o decurso do prazo de caducidade, tanto mais que, nestes casos pode ter existido relação afetiva ou social, entre o investigado
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=