TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

398 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Também se encontram nos tribunais comuns investigantes nascidos, durante a década de 80/90, época em que embora já estivesse prevista na lei a ação de averiguação oficiosa da paternidade, a cargo do Ministé- rio Público, a ter lugar até dois anos após o nascimento, ainda havia crianças que ficavam sem paternidade estabelecida em virtude da pouca fiabilidade dos exames de sangue disponíveis e do ónus da prova exigido à mãe do investigante: a exclusividade das relações sexuais com o pretenso pai durante o período legal de conceção (cfr. Assento de 21 de junho de 1983). Nestes casos, era fácil ao réu levantar «dúvidas sérias» acerca da paternidade, tantas vezes com o recurso a prova sobre uma alegada vida sexual ou reputação da mãe, que não passava de juízos de valor preconceituosos ou falsos, assim se explorando estereótipos negativos das mul- heres. Era exigido às mulheres uma prova diabólica de um facto negativo: que, durante o período legal de conceção, não tinham mantido nenhuma relação sexual com qualquer outro homem para além do réu. Que filho quereria então, após a maioridade, sujeitar a sua mãe a um processo destes? A esta luz, compreende-se bem que os autores destas ações muitas vezes afirmem que só decidiram colocar a ação de investigação após a morte da mãe, num momento em que já correram todos os prazos de caducidade legalmente previstos. As considerações expostas justificam que a Constituição tenha consagrado um princípio de não dis- criminação dos filhos nascidos fora do casamento, no artigo 36 . º, n . º 4, da CRP, princípio do qual se pode deduzir um reforço da natureza fundamental e pessoalíssima do direito à identidade pessoal, que tem como corolário o direito ao estabelecimento da paternidade sem dependência de prazo, suscetível de exigir, não meramente o alargamento do prazo-regra – cuja fixação concreta seria sempre, de alguma forma, arbitrária, insuficiente e geradora de injustiças – mas a inexistência de qualquer prazo. Daí que o discurso do acórdão que fez vencimento, para fundamentar a constitucionalidade da norma que fixa um prazo de caducidade, sobre a necessidade de a paternidade ser estabelecida em tempo útil, para permitir a proteção das crianças e dos jovens (coincidente com Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1995), seja completamente desajustado da realidade social a que se dirige a decisão do pre- sente Acórdão. Esta realidade refere-se ao passado, isto é, aos direitos de um grupo de pessoas que nasceram e viveram toda a sua infância ou parte dela num quadro jurídico em que lhes era vedado ou altamente dificultado (mediante pressupostos de admissibilidade) o exercício do direito. Atualmente, as ações de averiguação oficiosa da paternidade permitem resolver a maioria dos casos da filiação de crianças nascidas fora do casamento cujos progenitores não as perfilham, sem esquecer, de resto, que a maioria das crianças nascidas fora do casamento são filhas de pais que vivem em união de facto e são perfilhadas imediatamente pelo pai. Após a Reforma de 1977, com a introdução do princípio da verdade biológica no estabelecimento da filiação e um sistema livre de investigação da paternidade, apoiado na prova direta da procriação, mais tarde facilitada por exames de ADN, serão raros os casos de pessoas que cheguem à maioridade sem paternidade estabelecida a justificar o discurso do presente Acórdão. Mesmo nos casos em que o pretenso pai não cumpre o dever jurídico de perfilhar, o estabelecimento da filiação tende a ser feito durante a menoridade dos filhos, em virtude do dever de o Estado proceder à averiguação oficiosa da paternidade (artigo 1865 . º do Código Civil). 5. O argumento mais invocado neste debate costuma ser a questão dos direitos sucessórios, associada à segurança jurídica dos outros herdeiros legitimários do investigado. Esta preocupação, contudo, perdeu o relevo económico que tinha nas sociedades pré-industriais, em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza. A forma predominante de riqueza, hoje, é a que se constitui graças ao rendimento do trabalho em produtos bancários, que se transmitem à margem do Direito das Sucessões. Por outro lado, o risco de os efeitos sucessórios do estabelecimento da paternidade provocarem uma divisão do património imobiliário, contra as expetativas dos herdeiros do pretenso pai, é diminuto, pois, por força do decurso do tempo, já foram, em regra, adquiridos por usucapião. É descabido, até hipócrita, o argumento normalmente usado neste debate e reproduzido no Acórdão que fez vencimento, segundo o qual a interposição tardia da ação de investigação da paternidade resulta de um objetivo egoístico e patrimonial do investigante, que apenas procuraria obter, com a ação, os efeitos sucessórios decorrentes da qualidade de herdeiro legitimário. A este propósito, deve notar-se que a lei não

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