TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
397 acórdão n.º 394/19 «O autor, trabalhador da construção civil, nascido em 1967, alegou ter tido conhecimento da identidade do pai biológico, apenas com 45 anos de idade, data do falecimento da sua mãe, tendo sabido por familiares que a sua mãe com 14 anos de idade e com uma deficiência motora, tinha sido abusada pelo dentista durante uma consulta e assim engravidara». «O autor, nascido em 1947 encontra-se registado como filho de EE e pai incógnito. Algum tempo antes da sua morte, a mãe do Autor confidenciou-lhe quem era o seu pai, o que sempre lhe havia ocultado, sendo o seu pai o filho dos “patrões” em cuja casa tinha trabalhado como empregada doméstica, entre 1945 e 1948, e com quem tinha mantido um envolvimento amoroso». «O autor, nascido em 1959, com assento omisso na menção da sua paternidade, alega, o que se provou, ter a sua mãe e o falecido FF travado conhecimento por aquela ser empregada doméstica na casa dos pais deste e onde aquele residia à data; ter o falecido FF seduzido sua mãe, iniciando-se entre ambos um relacionamento íntimo, desde pelo menos meados de 1955, que perdurou até pelo menos julho de 1958, altura em que sua mãe foi des- pedida por os pais do falecido CC terem descoberto que se encontrava grávida; Foram realizados no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, exames ao sangue colhido aos Autor e 2.º, 3.º e 4.º Réus do que resultou a elaboração do respetivo laudo pericial, segundo o qual FF não pode ser excluído como pai biológico do Autor e a análise estatística da probabilidade de FF ser pai do Autor quando comparado ao acaso com um indi- víduo da mesma população, conduziu a uma probabilidade de w=99,8%. Os recorridos alegaram essencialmente que, durante o período de conceção, a mãe do Autor manteve relações sexuais com vários homens, podendo qual- quer um deles, ser o pai do Autor; alegam que na década de 60 a mãe do Autor, em representação deste, intentou ação de investigação da paternidade contra o falecido FF, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, que julgou a ação improcedente, absolvendo o FF do pedido». «Com cerca de 18 anos de idade a mãe dos A.A. começou a exercer a atividade de criada de servir em casa dos avós paternos do Réu CC. Ali habitando permanentemente, trabalhando, dormindo e comendo as suas refeições (2.º). O Réu CC viveu parte da sua infância com os avós paternos e ao longo do ano de 1962 era pelo menos visita frequente de tal casa dos avós paternos (3.º). Pelo menos ao longo do ano de 1962 os Réus CC e FF mantiveram entre si um número indeterminado de relações sexuais de cópula completa (4.º a 10.°). A Ré FF nunca antes tivera relações sexuais com outro homem, sendo o Réu CC o único homem que conheceu sexual e amorosamente desde 1962 e nos anos seguintes (11.° e 12.°). Em resultado dessas relações sexuais com o Réu CC ficou grávida da A. BB (13.°)». Estes casos permitem constatar realidades ou contextos importantes para compreender o bem jurídico em causa na presente questão de constitucionalidade: os autores destas ações nasceram antes da Reforma de 1977, período histórico em que a ordem jurídica protegia apenas a família matrimonial, discriminava, jurídica e socialmente, os filhos nascidos fora do casamento – os filhos «ilegítimos» – e estigmatizava as suas mães, designadas por «mães solteiras», que, nas situações sociais típicas, eram pobres e vulneráveis, por vezes crianças, na sua maioria, mulheres muito jovens. Na ordem jurídica de então vigorava um princípio de proibição da investigação da paternidade fora do casamento, cuja consequência era a irresponsabilidade dos homens pela procriação e a oneração exclusiva das mulheres com a geração e educação dos filhos nascidos fora do casamento. A situação de abandono, vivida pelas famílias monoparentais femininas, estava relacio- nada com a proteção da família matrimonial, o único modelo de família que o Estado reconhecia, e tinha por objetivo a defesa da integridade do património da família conjugal, à custa do sacrifício dos direitos dos filhos nascidos fora do casamento. Em função deste quadro histórico e cultural, os filhos nascidos fora do casamento viveram a sua infân- cia e juventude em contextos sociais hierarquizados, em que o investigante e a sua mãe pertenciam, em regra, a um estatuto sócio-económico inferior em relação ao do pretenso pai e em que a sexualidade fora do casamento constituía uma fonte de exclusão social das mulheres e dos filhos assim concebidos. A natureza patriarcal da sociedade é bem vísivel nas palavras de Gomes da Silva («O Direito da Família no futuro Código Civil (Segunda Parte)», in Boletim do Ministério da Justiça, n . º 88, 1959, p. 78), quando compara o filho nascido fora do casamento a um «membro alheio, enxertado à força no corpo de um homem».
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