TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
396 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26 . º, n . º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante). Tal aspecto da personalidade – a historicidade pessoal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada , 3 . ª edição, Coimbra, 1993, p. 179, falam justamente de um “direito à historicidade pessoal”) – implica, pois, a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos em causa (note-se, aliás, que os exames biológicos conducentes à determinação de filiação podem ser realizados, fora dos processos judiciais, e a pedido de particulares, sem qualquer limitação temporal, pelos próprios serviços do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos do artigo 31 . º do Decreto Lei n . º 11/98, de 24 de janeiro), bem como o reconhecimento jurídico desses vínculos. Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26 . º, n . º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade». A presunção de que o estabelecimento da filiação tem a sua dimensão mais importante durante a meno- ridade, esquece que existem entre pais e filhos, em todas as fases da vida, deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874 . º do Código Civil) e que esta solidariedade familiar se repercute em deveres de alimentos recíprocos entre pais e filhos adultos, segundo os artigos 1874 . º, n . º 2, e 2009 . º, n . º 1, alínea c) , do Código Civil, em situações de insuficiência de meios para fazer face a necessidades básicas de sobrevivência, por exemplo, desemprego, velhice ou doença grave e prolongada. Por outro lado, os efeitos sucessórios são ainda uma forma de os pais auxiliarem economicamente os filhos, o que se torna ainda mais relevante em relação a filhos nascidos fora de casamento, que, em regra, não beneficiaram desse auxílio. 4. Não se pode olvidar, na análise desta questão de constitucionalidade, o contexto jurídico que provo- cou o não reconhecimento da paternidade das pessoas que hoje são autoras destas ações. A Justiça Constitucional, embora de natureza mais abstrata do que a Justiça praticada pelos tribunais comuns e baseada noutro tipo de argumentos, existe ao serviço da pessoa humana e dos seus direitos funda- mentais, não podendo deixar de considerar, na interpretação e aplicação das normas constitucionais para- métricas, o «sujeito contextualizado», em vez do sujeito como conceito universal da teoria geral do direito. Os sujeitos que invocam a imprescritibilidade destas ações, ao abrigo do direito à identidade pessoal, são, sobretudo, as pessoas nascidas antes da reforma de 1977, época em que vigorava o princípio da proibição das ações de investigação da paternidade fora do casamento, apenas admitidas em casos excecionais, depen- dentes de determinados requisitos, os chamados “pressupostos de admissibilidade da ação” (artigo 1860 . º do Código Civil de 1966). Os obstáculos à admissibilidade da investigação da paternidade impunham-se, de acordo com as conceções da época, «pela necessidade que havia em proteger a família legítima ou a dignidade e honra dos indivíduos não casados (…) e de evitar a perturbação social (o escândalo) a que tais processos se prestavam de sobremaneira» (cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, Coimbra, 1978, p. 112). Para além de obstáculos à interposição de ações, o legislador, a fim de proteger a integridade do património da família conjugal, dava melhores direitos sucessórios aos filhos “legítimos”, desfavorecendo os “ilegítimos”, a quem cabia, na sucessão de descendentes, uma quota hereditária igual a metade da atribuída aos primeiros (artigo 2139 . º, n . º 2, do Código Civil de 1966). Vejamos quem são estes sujeitos, reproduzindo excertos da matéria de facto dos numerosos acórdãos dos tribunais comuns sobre esta matéria: «O autor da ação, nascido em 1945, sempre foi reputado como filho pelo investigado, que, até falecer, tratou sempre o Autor como filho, que assim foi também reputado pelo público: O réu sempre, mesmo perante terceiras pessoas, o tratou como filho até falecer sempre lhe dispensou cuidados, amparo, atenção e carinho, oferecia-lhe roupas e calçado, tratava-o por “o meu filho”, e aceitava que os seus familiares, amigos e vizinhos se referissem ao autor como sendo seu filho. Só intentou o processo depois de a mãe falecer, para respeitar a sua privacidade»;
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