TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
395 acórdão n.º 394/19 A fundamentação, que estabelece a analogia entre os prazos para a interposição de ações de natureza patrimonial e os prazos da ação de investigação da paternidade, está em total contradição com a natureza pessoalíssima do direito fundamental – direito à identidade pessoal – em causa nas ações de investigação da paternidade, consagrado no artigo 26 . º, n . º 1, da CRP, e com o princípio, constitucionalmente fundado, da primazia dos bens jurídicos pessoais sobre os bens jurídicos patrimoniais, conforme decorre do artigo 1 . º da Constituição que consagra a dignidade da pessoa humana como o fundamento do Estado de direito e foi também defendido no Acórdão n . º 23/06. Todo o direito civil, e, por maioria de razão, o direito da família, atinente à parte mais íntima e profunda da vida das pessoas, foram afetados pelo movimento de despatrimo- nialização, que faz prevalecer os valores pessoais sobre os patrimoniais, tendo por consequência necessária, no domínio agora tratado, que da conformidade constitucional dos prazos das ações destinadas a fazer valer direitos patrimoniais nada pode ser deduzido para a análise das questões de constitucionalidade dos prazos para a ação de investigação da paternidade. É que o direito à identidade é um direito fundamental de que todas as pessoas são titulares por serem humanas, decorrendo do lado mais profundo da pessoa humana e da sua necessidade de autoconhecimento e autodefinição. Não se trata, assim, de um direito reduzido à tutela judicial efetiva, mas de um direito inerente à própria condição humana e que nenhum Estado tem legitimi- dade para negar ou condicionar pelo estabelecimento de prazos. Esta comparação, a que procedeu o Acórdão que fez vencimento, com a tutela judicial que recebem os direitos patrimoniais, consiste numa apreciação manifestamente incorreta dos interesses ou valores em presença, e que desconsidera a perda que o prazo de caducidade do direito de ação determina para o investi- gante. Este, com a extinção, aos vinte e oito anos de idade, do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afetam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, de valor não mensurável, nem equiparável à perda patrimonial do autor que tardiamente exerce um direito de resolução do contrato de arrendamento ou um direito de reclamação de créditos. 3. O Acórdão, que agora fez vencimento, fundamenta a tese da constitucionalidade do prazo de caduci- dade na necessidade de incentivar os investigantes a intentar a ação o mais prematuramente possível a tempo de beneficiarem de proteção na infância e na juventude. O presente Acórdão confunde o bem jurídico em causa – a identidade pessoal – com a proteção da infância e da juventude. Ou seja, não só não lhe atribui um peso diferenciado e mais valioso do que o atribuído aos bens jurídicos patrimoniais ou à propriedade, como vimos no ponto anterior, como o con- funde com outros valores não abrangidos pela tutela constitucional da identidade pessoal, que se dirige tão- -só ao direito que as pessoas têm, em qualquer idade, à verdade sobre o seu lugar no sistema de parentesco e à autodefinição de si mesmo/a. A dimensão funcional do efeito da filiação – as responsabilidades parentais – quando o/a investigante é menor de idade, nada tem a ver com o direito à identidade pessoal, que assume uma dimensão exclusiva do conhecimento das raízes e da autodefinição de si mesmo/a. O Acórdão falha assim na identificação do bem jurídico protegido, que não é a proteção das crianças e dos jovens, mas a identidade pessoal ou a procura do lugar do indivíduo no sistema de parentesco, problema que geralmente afeta mais os adultos do que as crianças e os jovens, não se esbatendo a sua premência com a passagem do tempo, podendo constituir, pelo contrário, uma necessidade existencial de uma pessoa já idosa que quer deixar aos seus descendentes a sua filiação e apelidos de família, bem como a verdade sobre a sua história e a dos seus pais. Já o Acórdão n . º 23/06 assim definia o direito à identidade pessoal: «Compreende-se, aliás, que seja assim, pois o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na iden- tificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compro- misso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas
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