TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

393 acórdão n.º 394/19 a democratização da sociedade, o papel dos tribunais comuns na recusa de aplicação da norma, que estabel- ece prazos de caducidade para a investigação da paternidade, por violação do direito à identidade pessoal (artigo 26 . º, n . º 1, conjugado com o artigo 36 . º, n . º 1, ambos da CRP). Caberia, portanto, ao Tribunal Con- stitucional, por impulso dos tribunais comuns, fazer cumprir a Constituição em contraste com a “timidez” do legislador democrático que não conseguiu abandonar o sistema de prazos, já abolido noutros países con- géneres do nosso, como a Espanha, a Itália, a Alemanha, o Brasil, e os países africanos de língua portuguesa (Cabo Verde e Angola) e Macau (embora em Macau a ação se dirijam apenas ao estabelecimento da filia­ ção, sem os efeitos sucessórios correspondentes). Contudo, lamentavelmente, incumpriu agora o Tribunal Constitucional o papel que lhe cabe de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais do indivíduo, cedendo às conceções conservadoras, que perpetuam a discriminação e a desigualdade social. Neste ponto, demonstra-se que estão os tribunais comuns, que têm recusado a aplicação da norma agora questionada, mais próximos da realidade social do país e com mais habilitações para serem intérpretes da sociedade e para protegerem os direitos fundamentais em causa. Como se afirmou no Acórdão n . º 488/18, por mim relatado, retratando a situação jurídica e social atual: «A atestar esta falta de consenso e a necessidade social de uma posterior reponderação, surgem nos tribunais comuns, com frequência, ações de investigação da paternidade intentadas por pessoas nascidas antes da Reforma de 1977, época em que vigorava na ordem jurídica o princípio da proibição da investigação da paternidade e em que os filhos nascidos fora do casamento sofriam uma forte discriminação social e patrimonial. Esta realidade sociológica continua presente na sociedade portuguesa, com os filhos a interpor as ações de investigação da pater- nidade, fora do prazo legal, muitas vezes apenas após a morte da mãe, a fim de a proteger contra a devassa da sua vida privada normalmente implicada nestes processos, tendo em conta que até meados da década de noventa do século XX o uso de exames científicos se revelou ser muito restrito e de eficácia probatória reduzida (cfr. Helena Machado, Moralizar para identificar, Cenários da Investigação Judicial da Paternidade , Centro de Estudos Sociais, Porto, 2007, pp. 22 e 158-163). Recentemente, o Acórdão n . º 225/18 alterou a jurisprudência deste Tribunal no que diz respeito ao direito da pessoa concebida por PMA conhecer as suas origens e a identidade civil do dador de gâmetas, tendo sido declarado inconstitucional o princípio-regra do anonimato, visto como «uma afetação indubitavelmente gravosa dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26 . º, n . º 1, da CRP». Também no domínio do direito positivo, o direito a conhecer as origens sofreu uma maior valorização com a Lei n . º 143/2015, de 8 de setembro, que reconhece às pessoas adotadas o direito de a partir dos 16 anos solicitarem ao organismo de segurança social a identidade dos seus pais biológicos (artigo 6 . º, n . º 1, da citada lei e artigo 1990 . º-A do Código Civil). Estas alterações normativas e jurisprudenciais, pese embora a diferença, também assinalada no Acórdão n . º 225/18, entre a ação da investigação da paternidade e o conheci- mento da identidade civil do dador, não deixam incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade. É certo que o objeto da ação de investigação da paternidade dirige-se, não só ao conhecimento da identidade do progenitor biológico, mas também ao reconhecimento judicial do vínculo da paternidade com os respetivos efeitos jurídicos, tendo, portanto, implicações para terceiros (os herdeiros do pretenso pai) e para o investigado que estão ausentes na revelação da identidade do dador. Todavia, o estabelecimento da paternidade constitui um elemento relacionado com um aspeto da personalidade e da identidade pessoal de muito maior relevo (individual e de ordem pública) do que o mero conhecimento da identidade de um dador de gâmetas. A filiação fixa o lugar da pessoa no sistema de parentesco e confere-lhe um estatuto jurídico pessoal – o estado da pessoa. Por maioria de razão, perdem, assim, peso os argumentos para negar ao filho, autor da ação de investigação da paternidade, os seus direitos à identidade pessoal e ao reconhecimento da paternidade. Não por se tratar da procura da verdade biológica, pois esta não corresponde a qualquer imperativo constitucional autónomo nem exige uma tutela absolutizada, de nível máximo, mas por estar em causa um contexto situacional, em que a determinação da progenitura biológica consiste numa componente central da identidade pessoal e relacional do indivíduo, bem como da sua inserção na família e na sociedade, em termos que não têm qualquer paralelo com o conhecimento da identidade de um dador de gâmetas (destaque nosso).

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