TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

392 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL membro de uma família, que sacrifica ou aliena os seus direitos fundamentais por pertencer a uma família e nela desempenhar uma função, como era a situação jurídica das mulheres casadas, marcada por capitis diminutio, sucede o indivíduo, titular de direitos fundamentais, que passa a ser o centro da ordem jurídico-constitucional. O princípio da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36 . º, n . º 4, da CRP) comporta uma dimensão formal (a abolição de expressões vexatórias, como a de filho ilegítimo ou filho de pai incógnito) e uma dimensão material, que se repercute na subjetivização de um conjunto de direitos fundamentais dos indivíduos, por exemplo, o direito à não discriminação em relação aos filhos nas- cidos dentro do casamento, o qual não pode deixar de incluir, para além da óbvia referência à igualdade nos direitos sucessórios, o direito a suprir a omissão provocada pela lei anterior à Constituição de 76, no que diz respeito ao estabelecimento da paternidade. Este direito depende da prova do facto biológico da procriação, que, sendo uma prova difícil por se tratar de um facto oculto, foi facilitada pela lei através de um conjunto de presunções ilidíveis pelo réu, mediante a prova de dúvidas sérias (artigo 1871 . º do Código Civil). Foi a prova genética da paternidade com uma probabilidade bioestatística superior a 99, 5%, generalizada nos Tribunais de Família a partir do final da década de 90 do século XX, que permitiu revolucionar esta matéria. Contudo, em 1977, o legislador democrático, ainda longe desta evolução científica, por receio do envelhecimento da prova e das ações designadas por «caça fortunas», limitou-se a revogar os pressupostos da admissibilidade da ação, consagrados no artigo 1860 . º do Código Civil de 1966, mas manteve o prazo de caducidade de dois anos após a maioridade ou emancipação consagrado na versão originária do Código Civil de 1966, não abolindo, portanto, todas as barreiras jurídicas ao estabelecimento da paternidade dos filhos nascidos fora do casamento. Em 2009, na sequência do Acórdão deste Tribunal n . º 23/06, que declarou inconstitucional a norma do n . º 1 do artigo 1817 . º, por “excluir totalmente a possibilidade de investigar judicialmente a paternidade (ou a maternidade), logo a partir dos vinte anos de idade”, o legislador, por intermédio da Lei n . º 14/2009, de 1 de abril, veio alargar este prazo para dez anos após a maioridade ou emancipação, e estabelecer, também, um regime de prazos dies a quo subjetivo, cujo início de contagem se define a partir do conhecimento de “factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação” [artigo 1817 . º, n . º 3, alíneas b) e c) , do Código Civil]. Este regime de prazos, embora mais generoso para o investigante, não conseguiu resolver o problema social dos filhos nascidos fora do casamento antes da Reforma de 1977. O prazo geral de dez anos continuou a ser manifestamente insuficiente, tanto mais que, na maioria dos casos, já tinha decorrido mesmo antes de 2009. Os prazos flexíveis reportam-se a factos difíceis de demonstrar. Por outro lado, muitas vezes o filho sempre soube quem era o seu pai, com quem até se relacionou. Contudo, não foi perfilhado, por razões de conveniência social, típicas das sociedades hierarquizadas em função do género e da classe social. Neste contexto, por respeito à privacidade dos seus pais, só intenta a ação após a morte de ambos ou após a morte da mãe, que, por ser mulher e mãe solteira, já sofreu de discriminação e devassa de privacidade em dimensão muito superior àquela que poderia vir a sofrer o progenitor investigado na ação. Sendo o direito da família o ramo do direito civil mais permeável às mutações políticas e sociais, ainda assim, na ordem jurídica portuguesa, o legislador democrático procurou, nesta matéria da investigação da paternidade, soluções de compromisso, em que os direitos fundamentais dos filhos foram sacrificados para dar satisfação às forças conservadoras da sociedade, também presentes, sob a capa do conceito de segurança jurídica, no debate que trava o Acórdão que fez vencimento. Foi assim que em 1977 não foi alterado o prazo geral de caducidade para a interposição da ação de investigação da paternidade que vigorava no Código Civil de 1966 (em contraste com o prazo mais amplo estipulado no artigo 37 . º do Decreto n . º 2, de 25 de dezembro de 1910, reportado não à menoridade do investigante, mas à data da morte do pretenso pai ou da pretensa mãe) e que, em 2009, apesar do regime instaurado ser mais generoso, o Parlamento não adotou a tese da imprescritibilidade. As pessoas sem paternidade estabelecida, a maioria nascidas antes da Reforma de 1977, foram marcadas por uma infância e juventude que, em muitos casos, teve aspetos de pobreza e discriminação, e não estão organizadas em grupo de pressão política. Daí que o legislador não tenha estado atento ou até ignore esta situação e a necessidade de a corrigir por via legal. Neste quadro, tem sido particularmente importante, para

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