TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

389 acórdão n.º 394/19 reconhecimento da paternidade biológica ao prazo de caducidade previsto no n . º 1 do artigo 1817 . º do Código Civil: enquanto o segundo prova demais, o primeiro incorre no paradoxo de buscar na recusa de uma «compreensão dos direitos fundamentais centrada exclusivamente no indivíduo», à margem da sua condição de «membro de uma comunidade», o fundamento último para justificar a resolução da colisão dos direitos em confronto – isto é, o «direito do investigante a ver reconhecida a sua ascendência biológica e o estabe- lecimento do vinculo jurídico da filiação» e os direitos do investigado (e dos seus familiares) à «reserva da intimidade da vida privada e familiar» –, através da exclusão da possibilidade de exercício do primeiro após o respetivo titular haver completado 28 anos de idade, a não ser nas hipóteses – no essencial, de superveniência meramente subjetiva –, contempladas no n . º 3 do artigo 1817 . º do Código Civil. 6. A partir do momento em que se assume que o conhecimento e o reconhecimento da progenitura biológica «representa[m] uma ‘referência’ essencial da pessoa (de cada pessoa) […] e elemento ou condição determinante da própria capacidade de autoidentificação de cada um como ‘indivíduo’ (da própria ‘cons­ ciência’ que cada um tem de si)» (Acórdão n . º 99/88), muito dificilmente poderá deixar de se lhes reconhecer um valor intrínseco, a se, que não é, por isso, eliminável ou deflacionável, seja por (mero) efeito do decurso do tempo, seja em resultado da agregação de outras dimensões ou conteúdos à identidade pessoal, designa- damente daqueles em que se projetam as escolhas que cada um vai fazendo ao longo da vida, em todos os planos – afetivo, social, profissional, etc. – em que lhe é assegurada a participação nos destinos da sua própria existência. É verdade que a identidade pessoal, longe de constituir um dado, se encontra em permanente cons­ trução e esta em progressivo movimento. Ela é encarada por isso, também pela Constituição, como o resul- tado de um “fazer-se” contínuo, em que avultam as vivências afetivas, sociais e morais de que cada um é simultaneamente promotor e destinatário na relação que estabelece quotidianamente com os demais. O facto de assim ser tem, todavia, um alcance bem diferente daquele que lhe é atribuído pela maioria: ao supor uma imagem ampla da pessoa, integrada na realidade efetiva das suas relações familiares e humano- -sociais, o que a Constituição quer significar é que a tutela da identidade pessoal não pode deixar de acomo- dar também, e em simultâneo, as outras dimensões que codefinem o ser-pessoa enquanto «sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra, 2007, p. 463); não que o direito à historicidade pessoal, enquanto direito de cada ser humano a conhecer o seu património genético e a identidade dos seus progenitores, perca a sua condição de «dado importantíssimo», nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo, ou deixe de assumir o seu lugar próprio na conformação da identidade do ser-pessoa: seja qual for o momento da idade adulta em que tal interrogação sobrevenha, «saber quem sou» continuará sempre a exigir «saber de onde venho» (cfr. Guilherme de Oliveira, Caducidade das ações de investigação, em Comemo- rações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977 , vol. I, Coimbra Editora, 2004, p. 51), independentemente do valor ou relevância dos demais conteúdos identitários que vão sendo continuamente alcançados em virtude da permanente comunhão com os outros. 7. Afastada a ideia de que, uma vez atingidos os 28 anos de idade, a relevância do direito ao conhe- cimento e ao estabelecimento do vínculo da paternidade perece ou diminui ao ponto de constituir funda- mento apto a facultar ao legislador ordinário a eliminação do meio – repete-se, do único meio – pelo qual tal direito pode ser efetivado contra a vontade ou sem a colaboração do pretenso progenitor, o problema que se coloca é, invertidos os respetivos termos, aquele que o próprio acórdão não deixou de enunciar: será constitucionalmente tolerável privar definitivamente alguém, que completou já 28 anos de idade, do direito de conhecer e ver reconhecida a respetiva paternidade biológica pelo facto de não ter interposto a corres­ pondente ação dentro dos três anos subsequentes ao momento em que teve conhecimento dos factos ou circunstâncias justificativos da investigação? Para responder a essa questão há um dado que não pode deixar de ser em conta.

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