TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
387 acórdão n.º 394/19 Código Civil, aditado pela Lei n . º 143/2015, de 8 de setembro) e do regime de utilização de técnicas de reprodução medicamente assistida com recurso à doação de gâmetas (cfr. artigo 15 . º da Lei n . º 32/2006, alterada pela Lei n . º 25/2016, de 22 de agosto). Estando em causa o estabelecimento da paternidade biológica de filho de pai incógnito, o conhecimento da progenitura e a constituição do correspondente vínculo jurídico são, à partida, indissociáveis: ao mesmo tempo que faculta o conhecimento da progenitura, a ordem jurídica impõe o reconhecimento judicial do correspondente vínculo jurídico (cfr. artigo 1865 . º, n . º 5, do Código Civil, e artigo 62 . º, n . º 1, da Lei n . º 141/2015, de 8 de setembro), sendo este, com todos os seus efeitos, que «confere ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas», algo que, por nos distinguir e caracterizar perante os outros, se encontra igualmente abrangido pelo direito à identidade pessoal (Acórdão n . º 401/11). 2. Com este significado, o direito ao conhecimento e ao reconhecimento judicial da paternidade biológica exerce uma dupla função normativa: trata-se de um direito que gera para o Estado não apenas o dever de omitir todas as ações suscetíveis de o suprimir ou afetar, como ainda o dever de participar e de intervir, promovendo-o e protegendo-o através da criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à respetiva defesa e satisfação (neste sentido, sobre a dupla função vinculativa dos direitos fundamentais, cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 1991, p. 139), designadamente perante a atuação (ou a omissão) de terceiros. Nesta última aceção, o direito ao conhecimento e ao estabelecimento da paternidade biológica tem a estrutura dos direitos a prestações normativas, apresentando-se como um direito à edição de normas, tanto substantivas como procedimentais, que assegurem a possibilidade do respetivo exercício. Sabendo-se que, nos casos em que o suposto pai recusa qualquer colaboração, a ação de investigação da paternidade corresponde ao único meio funcionalmente apto para assegurar efetivação do direito ao conhe cimento da ascendência biológica e ao estabelecimento do correspondente vínculo jurídico (cfr. Acórdão n . º 346/15), a questão que aqui se coloca consiste em determinar se o conjunto de normas destinado a assegurar o cumprimento do imperativo constitucional de tutela – no caso, o regime que resulta do artigos 1817 . º, n . º 1, do Código Civil, na redação conferida pela Lei n . º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873 . º do mesmo diploma –, assegura uma proteção suficientemente eficiente daquele direito ou, pelo contrário, carece de ser para esse efeito ampliado. É justamente na resposta a essa questão que reside a minha divergência relativamente à posição sufragada pela maioria. 3. Tal como assumido no presente Acórdão, partilho da ideia segundo a qual, no âmbito da concretização dos imperativos jurídico-constitucionais de tutela, o legislador dispõe, em regra, de uma ampla margem de discricionariedade: se o Estado se encontra obrigado a proteger, a decisão sobre como tal obrigação deverá ser satisfeita «é algo que “em primeira linha”, “em grande medida” ou “em essência”, cabe ao legislador» ordinário (Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, 2008, p. 463). Por outras palavras: impondo a Constituição «“[…] a proteção como resultado, mas não a sua conformação específica”» (Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado , Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 122-123), fica, em regra, aberto ao legis- lador ordinário um amplo espaço de livre decisão quanto ao modo como o direito infraconstitucional deve ser especificamente conformado em ordem à realização daquele desiderato ( idem , p. 119). Apenas em circunstân- cias excecionais – que são, justamente, as do meio único – é que esse espaço é reduzido a zero. O limite mínimo da margem de conformação que assiste ao legislador ordinário é dado, em qualquer caso, pelo princípio da proibição da insuficiência: excluída a possibilidade de realização dos imperativos constitucionais de tutela pelos órgãos jurisdicionais, apenas as soluções que coloquem a ordem jurídica aquém do nível mínimo de proteção imposto pela Lei Fundamental tornarão o resultado da intervenção do legislador ordinário constitucionalmente censurável.
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