TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

385 acórdão n.º 394/19 se sedimentam os laços afetivos e os demais aspetos essenciais da relação entre pai e filho −, a relevância e força relativa dos interesses de descendente e progenitor altera-se gradualmente perante a ordem constitucio- nal. O interesse daquele perde a parcela da carga axiológica que a necessidade de proteção na infância e na juventude lhe dispensam (artigo 68 . º, n . º 1, da Constituição), permanecendo exclusivamente aqueloutras que se prendem com a relevância que para a sua identidade pessoal representa o estabelecimento da filiação e com os direitos sucessórios atribuídos por lei aos descendentes. O interesse do progenitor em não ser pai, por outro lado, e o interesse dos seus parentes mais próximos em que não assuma essa condição a respeito de uma pessoa estranha à historicidade das suas relações familiares, legitima-se e adquire uma relevância crescente que acompanha o decurso do tempo. Sem dúvida que nas etapas iniciais da vida adulta a posição relativa destes interesses continua dese- quilibrada a favor do descendente. Assim é por duas razões. Em primeiro lugar, porque tendo este sofrido a desvantagem de crescer sem pai, só agora terá a oportunidade de tomar uma decisão autónoma e refletida sobre a relação entre a verdade biológica e a sua identidade pessoal, sem descurar a ponderação dos direitos sucessórios, estes de natureza essencialmente patrimonial. Em segundo lugar, porque não decorreu tempo suficiente para que se tenham legitimamente consolidado representações familiares que integram a identi- dade pessoal do investigado e de que o investigante não participa, tanto mais que a maioridade se atinge numa fase da vida em que os papéis parentais têm ainda uma relevância social especial. Os termos em que os interesses dos implicados se contrapõem, e bem assim o direito fundamental à identidade pessoal que deles releva, permite, no entanto, compreender a importância de que neste domínio se reveste o tempo: o decurso de um período longo sem que o investigante tenha agido com vista a atuali- zar o estado jurídico e o valor simbólico associados ao facto da progenitura fragiliza irremediavelmente o peso constitucional da sua pretensão e reforça o peso da pretensão oposta do investigado e de terceiros que integrem o universo das suas relações familiares. A inércia do investigante sinaliza um desinteresse pela «ver- dade biológica», estabelecendo-se reflexamente uma «verdade social» constitutiva da identidade pessoal do investigado e dos que lhe são mais próximos. Por tudo isto, creio que a fixação de um prazo razoável para instaurar a ação de investigação da paternidade, como me parece ser o de 10 anos sobre a maioridade ou a emancipação, com as ressalvas imprescindíveis para os casos previstos nas alíneas b) e c) do n . º 3 do artigo 1817 . º do Código Civil, é uma forma adequada, necessária e proporcional de realizar a concordância prática ditada pela natureza do problema. Vou mais longe. Não basta afirmar que a solução consagrada na lei de fixação de um prazo de caduci- dade é constitucionalmente admissível; trata-se de uma imposição constitucional decorrente do dever estatal de não sacrificar integralmente o direito à identidade pessoal do investigado e seus familiares, radicada na «verdade social» que se estabelece gradualmente pelo decurso do tempo. Foi essa, de resto, a solução que o legislador encontrou para problemas homólogos em matéria de filiação, entre os quais se destaca a definição de um prazo para a impugnação da paternidade do marido da mãe na alínea a) do n . º 1 do artigo 1842 . º do Código Civil, que o Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional nos Acórdãos n. os 589/07, 593/09, 179/10, 446/10 e, se bem que na perspetiva oposta da apreciação constitucional da própria possibilidade de impugnação quando se verifica posse de estado, no recente Acórdão n . º 308/18. Creio que o direito do descendente adulto ao estabelecimento da filiação tem exatamente o mesmo fun- damento e peso constitucional do que o direito do pai que descobre não ser o progenitor do filho a impugnar a paternidade fundada na presunção matrimonial. Trata-se, nas duas situações, de colocar a ordem jurídica ao serviço da «verdade biológica», na medida − e apenas nessa estrita medida – em que tal facto, segundo o juízo insindicável do autor da ação, realize uma dimensão da sua identidade pessoal. E trata-se ainda, nas duas situações, de estabelecer um equilíbrio entre a pretensão legítima do autor ao reconhecimento oficial e integral dessa verdade na sua vida e a pretensão não menos legítima do réu e da sua família a que as suas próprias identidades pessoais se não encontrem eternamente submetidas ao domínio volitivo de terceiro. Ora, a concordância entre ambas pode fazer-se, unicamente, através de prazos razoáveis, como aqueles que a lei estabelece para as duas situações. – Gonçalo de Almeida Ribeiro.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=