TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
369 acórdão n.º 394/19 Refletindo sobre o dever geral de proteção dos direitos fundamentais que recai sobre o Estado contra ações ou omissões de terceiros, Reis Novais salienta precisamente a autonomia que assiste ao legislador na escolha da forma mais adequada de efetivar esse dever. Na sua perspetiva, poderá deduzir-se da Constituição a existência de um dever geral de proteção (artigo 18 . º, n. os 1 e 2, in fine ), dever que é «uma consequência primária de atribuição ao Estado do monopólio da utilização da força» e se traduz «numa obrigação abrangente de o Estado conformar a sua ordem jurídica de tal forma que nela e através dela os direitos fundamentais sejam garantidos e as liberdades neles sustentadas possam encontrar efetivação». Porém, «salvo casos em que essa obrigação esteja excecionalmente determi- nada ou em que a omissão estatal se traduza numa lesão evidente dos direitos fundamentais, por violação da Untermaßverbot [proibição de proteção deficiente], a decisão última sobre o se, o quando e, sobretudo, o como da proteção do direito fundamental contra agressões de terceiros cabe na margem de decisão política do legislador (…)» – cfr. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição , 2 . ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 88-89. E justifica-se que assim seja. Como é sabido, a Constituição, ignorando características de diferenciação que comprometam a sua própria ordem de valores, reconhece a todos os cidadãos os mesmos direitos fundamentais e impõe ao Estado a defesa transversal, por via legal, administrativa e jurisdicional, não apenas desses direitos, mas também dos interesses de toda uma comunidade. A concretização dessa insubstituível função garantística impõe uma difícil tarefa de harmonização normativa, que necessariamente reclama a tomada de opções complexas, que só o legislador democraticamente eleito está habilitado a tomar, ainda que no respeito pelo conjunto de princípios e normas consagrado na Constituição. Ao poder constituinte cabe a definição proclamatória dos direitos e valores a que o poder constituído deve obediência; compete a este último a árdua incumbência de dar a todos eles efetividade no plano da vida, designadamente por via do direito de ação, que é a forma mais apropriada de defesa contra agressões alheias consentida num Estado de direito. Ora, ninguém, em consciência, pode contestar que o cumprimento desse dever de proteção, atenta a extensão e heterogeneidade dos bens constitucionalmente protegidos, a multiplicidade dos contextos situa- cionais em que os mesmos se revelam e a impossibilidade de dar a todos eles e ao mesmo tempo proteção absoluta, exige decisões integradas, conciliatórias e prospetivas. É, pois, ao legislador que primariamente cabe, no cumprimento do mandato popular que lhe foi con- cedido, avaliar à luz do interesse público as implicações das suas escolhas e dimensionar, com respeito pela Constituição, a medida de tutela jurisdicional que deve conceder a cada um desses direitos e valores. E é disso que precisamente se trata quando falamos do direito de ação e da forma como o legislador regula o respetivo exercício, estabelecendo-lhe condições e limites, designadamente de ordem temporal. Através da ação (civil), o particular manifesta perante o Estado uma pretensão de tutela jurisdicional para uma determinada relação material de direito privado, que opõe autor e réu (Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil , Coimbra, Coimbra Editora, 1963, pp. 4-5). Todavia, os problemas respeitantes à concreta configuração legal do direito de intentar em juízo essa ação (direito de ação) dizem já respeito à relação que se estabelece entre o Estado, que tem o dever de proteger os direitos fundamentais, designada- mente por meio dos tribunais, e os cidadãos, os quais, por sua vez, têm o direito a obter do Estado a tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos fundamentais – artigo 20 . º, n. os 1 e 5, da Constituição. O Acórdão n . º 299/95, já acima referido, chamou precisamente a atenção para essa importante distin- ção de planos, ao salientar, na esteira do ensinamento de Manuel de Andrade aí transcrito, que «na ação se podem surpreender dois sentidos ou direcções: a ação em sentido material e a ação em sentido processual. À luz deste entendimento, o direito de ação que assegura a tutela dos direitos subjetivos não pode confundir-se com a essência substantiva destes mesmos direitos, porque representam direitos distintos, com sujeitos pas- sivos também diversos». Aplicando às ações de investigação da paternidade as conclusões que esse mesmo acórdão extraiu deste entendimento para o tipo de ação aí em discussão, pode dizer-se que, no plano do direito substantivo, a
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