TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
250 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O princípio do juiz natural ou legal encontra-se consagrado no âmbito das «garantias de processo cri- minal» contempladas no artigo 32.º da Constituição, através da previsão segundo a qual «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» (n.º 9). Mais até do que uma emanação, ao nível processual, do princípio da legalidade em matéria penal – domí- nio no qual não deixa, ainda assim, de assumir uma relevância superlativa ou qualificada —, o princípio do juiz natural ou do juiz legal constitui um subprincípio concretizador do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º) no domínio da administração da justiça, inscrevendo-se assim, enquanto garante da independên- cia e imparcialidade dos Tribunais (artigo 203.º), naquela categoria de princípios que conformam o modo de proceder dos poderes públicos, densificando a ideia da sua sujeição «a princípios e regras jurídicas» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , Volume I, Coimbra, 2007, p. 205). É essa a razão pela qual, para efeitos de determinação do âmbito de proteção assegurado pelos artigos 32.º, n.º 9, e 203.º da Constituição, por «juiz natural» ou «juiz legal» deverão entender-se, não apenas os tribunais ou os juízes criminais, mas «todos os juízes de todos os tribunais do Estado»; e, por regras de determinação do tribunal competente, todas aquelas que digam respeito quer «à determinação da jurisdição competente» (no caso presente, jurisdição comum ou administrativa), quer «à determinação do tribunal competente dentro [de certa] jurisdição» (determinação do tribunal competente em razão da matéria, hierarquia ou território), quer ainda «à determinação do juiz, ou juízes, [competentes] dentro da formação judiciária» que haja de intervir no julgamento da causa (tribunal singular ou coletivo) (cfr. Miguel Nogueira de Brito, “O princípio do juiz natural e a nova organização judiciária”, in Julgar , Coimbra, n.º 20, 2013, Coimbra Editora, p. 31). Com este alcance, o princípio do juiz natural «esgota o seu conteúdo de sentido material na proibição da criação ad hoc , ou da determinação arbitrária ou discricionária ex post facto , de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal». Do que se trata, sobretudo, «é de impedir que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que compreensivelmente se pode designar por raison d’État – con- duzam a um tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível com o princípio do Estado de direito» (Figueiredo Dias, “Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do «juiz-natural»”, Revista de Legislação e Jurisprudência , Coimbra, ano 111.º, n.º 3615, p. 83). É também esse o sentido em que o princípio do juiz natural, também designado por juiz “pré-determi- nado” ou “pré-constituído” por lei, vem sendo densificado na jurisprudência deste Tribunal. Logo no Acórdão n.º 393/89 – que considerou compatível com a garantia do juiz legal o método de determinação concreta da competência ainda hoje previsto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal – fez-se notar que, de acordo com a sua função de garante «da independência dos tribunais perante o poder político», o que princípio do juiz natural proíbe «é a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc (de exceção) de um certo tribunal para uma certa causa», isto é, e «em suma, os tribunais ad hoc ». O mesmo entendimento foi subsequentemente reiterado no Acórdão n.º 212/91, aresto no qual se sublinhou uma vez mais a ideia de que o princípio do juiz natural ou do juiz legal, «tendo a ver com a independência dos tribunais perante o poder político», proíbe «“a criação (ou a determinação) de uma com- petência ad hoc (de exceção) de um certo tribunal para uma certa causa – em suma, os tribunais ad hoc )”». No desenvolvimento de tal premissa, o Acórdão n.º 614/03 levou o esforço de densificação da garantia do juiz natural um pouco mais além. Independentemente da possibilidade de discernir no princípio do juiz natural «um verdadeiro direito fundamental subjetivo de dimensões objetivas de garantia», considerou-se, no referido aresto, que o con- teúdo de tal princípio compreende duas dimensões, uma positiva e outra negativa, ambas vinculando o legislador ordinário na sua tarefa de conformação ou concretização normativa, através da edição de «regras de determinação do juiz “natural” ou “legal”», do âmbito de proteção da mencionada garantia. À dimensão positiva corresponde o «dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas», por tribunal com- petente para este efeito se entendendo tanto «o órgão judiciário competente», como a «formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.)», como ainda «os concretos juízes que a compõem».
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