TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
136 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A pendência de um inquérito instaurado na sequência da notícia de crime tributário significa, no mínimo, a existência de indícios de que foi cometida tal infração. A subsequente realização de uma inspeção tributária, necessariamente dirigida a contribuintes determinados, já não é dissociável de tal suspeita e, por conseguinte, não pode deixar de ser vista também como uma diligência de investigação criminal que afeta pessoalmente o contribuinte-suspeito. Daí que a colaboração legalmente devida com a inspeção tributária redunde inevitavelmente numa colaboração forçada com a investigação criminal levada a cabo pela mesma Administração, no seu papel de órgão de polícia criminal. E esta última colaboração, a ser admissível, repre- sentaria pura e simplesmente um dever de autoincriminação e, como tal, o oposto do direito à não autoincri- minação constitucionalmente garantido. No limite, a Administração fiscal, sob a veste de inspeção, poderia forçar o contribuinte a entregar-lhe toda a prova documental necessária para que a mesma Administração, agora sob a veste de autoridade e órgão de polícia criminal, pudesse levar ao inquérito e justificar material- mente a dedução pelo Ministério Público de uma acusação criminal contra o contribuinte. A colaboração exigível ao suspeito ou arguido num processo penal está limitada às diligências de prova admissíveis no quadro legal desse mesmo processo; no mais, a acusação tem de ser construída sem recurso a provas obtidas, com desrespeito da sua vontade, através da coação ou de meios de coerção utilizados contra aquele. De outro modo, fica comprometida a sua participação esclarecida, livre e autorresponsável no pro- cesso e, consequentemente, prejudicada a sua posição enquanto sujeito (processual) capaz de se autodetermi- nar na condução da sua defesa (cfr. supra o n.º 10). Acresce a todas as considerações anteriores que o sacrifício do direito fundamental à não autoincrimi- nação no domínio do processo penal tributário, mesmo considerando que apenas está em causa uma zona periférica do seu âmbito de proteção (os documentos fiscalmente relevantes), não se mostra suficientemente justificado pelos interesses que relevam da garantia das funcionalidades próprias do sistema fiscal e do cum- primento da lei fiscal na fase sancionatória. Em primeiro lugar, porque os documentos obtidos na sequência das inspeções realizadas já depois de instaurado o inquérito criminal podem – e devem – continuar a ser utilizados no procedimento tributário, designadamente para efeito de apuramento da situação tributária do contribuinte e de liquidação dos impos- tos que porventura se encontrem em falta. Depois, porque a colaboração do contribuinte no âmbito da inspeção tributária não é absolutamente indispensável para fazer chegar ao processo penal tributário tais documentos, não se podendo falar em qual- quer “imunidade penal”. Com efeito, o CPP prevê meios de obtenção de prova, como as buscas e as apreen- sões, que são idóneos para o efeito. Verifica-se, por conseguinte, uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios da restrição em análise, uma vez que inexiste uma articulação racional suficiente entre os custos ou desvantagens a suportar pelo titular do direito – o contribuinte, suspeito ou arguido – e os benefícios ou vantagens que a mesma per- mite alcançar para o interesse público. Por isso, tal restrição do direito à não autoincriminação ínsito no prin- cípio nemo tenetur se ipsum accusare mostra-se desproporcionada e, como tal, constitucionalmente ilegítima. 18. Finalmente, importa fazer uma referência ao argumento utilizado pelo tribunal a quo segundo o qual os documentos fiscalmente relevantes estão fora do âmbito de proteção do princípio nemo tenetur se ipsum accusare , atenta a circunstância de não revestirem caráter autoincriminatório: «os elementos probató- rios a que a recorrente alude foram obtidos independentemente da vontade dos aqui arguidos, não tendo sido por eles elaborados para o efeito, e, como tal, não colhe a argumentação aduzida em redor da prerroga- tiva à não autoincriminação» (cfr. fls. 1744, verso ). Este argumento parece ecoar a fórmula constante do acórdão Saunders , cit. , § 69, segundo a qual o direito à não autoincriminação não abrange a utilização em processo penal de elementos de prova que pos- sam ser obtidos do acusado através do exercício de poderes coercivos, contanto que a existência de tais ele- mentos seja independente da vontade do arguido, tais como documentos apreendidos em buscas, amostras de sangue ou de urina e tecidos corporais para testes de ADN.
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=