TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

135 acórdão n.º 298/19 pelo contribuinte no procedimento de inspeção com o objetivo de esclarecer a sua situação tributária e de viabilizar a liquidação adicional do imposto eventualmente em falta, porque já foi iniciada uma investigação visando o apuramento da responsabilidade criminal do mesmo contribuinte, vão, com toda a probabilidade, ser utilizados também para esse fim, convertendo o contribuinte numa espécie de co-instrutor do processo. Antes de instaurado o inquérito criminal, os documentos disponibilizados ao abrigo do dever de cola- boração podem ser aproveitados para instruir este último atendendo às razões justificativas da restrição do nemo tenetur (cfr. supra os n. os 13 e 16). O risco de abuso do dever de colaboração do contribuinte existe, mas depende de uma atuação de má fé da Administração tributária, que não pode ser presumida. Em si mesma, a solução de aproveitar aquele material não é abusiva; aliás, visa prevenir um resultado que redundaria numa «imunidade penal» (Acórdão n.º 340/13). Acresce que estão em causa informações que não podiam ser reco- lhidas de outro modo. É verdade que tal utilização no âmbito do processo penal tributário implica um desvio de fim (os documentos entregues ao abrigo de deveres de cooperação e sob a ameaça de sanções são utilizados para uma finalidade diferente daquela que justificou a sua entrega), mas o mesmo, além de eventual e conse- quencial, ainda se pode considerar justificado com base na ponderação feita entre os benefícios para o inte- resse público alcançado e os custos impostos por tal solução para o interesse da defesa penal do contribuinte. Depois de iniciado o processo criminal, o eventual aproveitamento de tais informações nesse processo, já não se pode considerar meramente casual e justificado pela necessidade de prevenir qualquer imunidade. A sua única justificação residirá, então, apenas em preocupações de eficácia e de eficiência da própria perse- guição criminal. E o desvio de fim traduzido na utilização no processo penal de informações e material pro- batório recolhidos à margem das diligências de prova legalmente admitidas no quadro processual penal não pode deixar de estar presente ab initio , isto é desde que é exigida ao contribuinte a entrega dos documentos. O mesmo é dizer que tal desvio é inerente à própria admissibilidade da utilização desse material probatório no âmbito do processo penal tributário. Com efeito, a exigência de entrega de documentos é feita pela Administração fiscal num momento em que a mesma já desempenha um duplo papel, como inspeção tributária e como órgão de polícia criminal. Ora, dada a diversidade de regimes aplicáveis a cada um desses papéis, não é indiferente para determinar as possibilidades de atuação, seja da Administração – aquilo que esta pode exigir –, seja do contribuinte – aquilo que ele está obrigado a fazer –, saber qual a função concretamente em causa numa dada situação. Deste modo, utilizar no processo penal documentos obtidos coativamente do contribuinte por via da inspe- ção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significa transformar a colaboração do contribuinte num meio de obtenção de prova contra si próprio. Do ponto de vista deste último, e nessa medida, há uma atuação objetivamente enganosa – porque camuflada – por parte da Admi- nistração fiscal, suscetível de relevar nos termos do artigo 126.º, n.º 2, alínea a) , do CPP: o contribuinte é levado a pensar que fornece os documentos estritamente para os fins específicos da inspeção, uma vez que é interpelado ao abrigo do dever de cooperação previsto na LGT e no RCPITA, apurando-se depois que, afi- nal, os mesmos documentos são utilizados num processo criminal já existente à data da solicitação da entrega dos documentos e no âmbito do qual tal solicitação não poderia ser feita sob a ameaça de sanções. A instrumentalização do dever de colaboração decorrente da utilização dos documentos para um fim diferente daquele para o qual foram entregues e, portanto, o abuso do mesmo dever, é patente. Além disso, continuar a admitir a relevância do dever de colaboração, enquanto restrição ao nemo tene- tur , para efeitos de legitimar a utilização no processo penal de meios de prova obtidos em razão do cumpri- mento de tal dever, criaria neste último processo um enorme desequilíbrio favorável à acusação e desfavorável ao arguido, comprometendo a possibilidade de autodeterminação deste na condução da sua defesa e, em última análise, a sua posição enquanto sujeito processual. Nada justifica que o tratamento processual penal do contribuinte, que também seja suspeito ou arguido, possa ser mais desfavorável do que o tratamento de qualquer outro suspeito ou arguido. Recordem-se, a este propósito, as faculdades e prerrogativas concedidas à Administração tributária a título de “garantias do exercício da função inspetiva”, previstas nos artigos 28.º e 29.º do RCPITA (cfr. supra o n.º 14), sem paralelo tão generoso no quadro processual penal.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=