TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
125 acórdão n.º 298/19 O pressuposto comum desta jurisprudência é a possibilidade de utilizar como prova incriminadora a informação que uma pessoa foi coagida a disponibilizar, convertendo-a assim em instrumento da sua própria incriminação. 13. Para a decisão do presente recurso interessa considerar os deveres de colaboração previstos no qua- dro da inspeção tributária e, sobretudo, as condições de utilização como prova dos documentos obtidos na sequência de tal atividade inspetiva num processo penal (fiscal) movido contra o contribuinte inspecionado. Trata-se de um domínio problemático com zonas de sobreposição relativamente ao que se passa no âmbito da regulação económica e da supervisão financeira, mas que também apresenta algumas especifici- dades. Com efeito, a colaboração com a Administração tributária exigida aos contribuintes, à semelhança do que sucede relativamente a entidades reguladoras como a Autoridade da Concorrência ou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, é imprescindível para viabilizar o exercício da função fiscalizadora que àquela se encontra legalmente cometida. Contudo, e diferentemente do que sucede com as mencionadas entidades reguladoras – que, em acréscimo às atividades específicas de regulação e supervisão, também desen- volvem procedimentos de natureza sancionatória no domínio das contraordenações, e por isso investigam e podem aplicar coimas (daí a lógica de continuidade de atuação” referida, a tal propósito, nos Acórdãos n. os 461/11 e 360/16) – a Administração fiscal, quando estão em causa crimes fiscais, não só não pode aplicar a sanção correspondente, como a sua atividade de investigação se encontra funcionalmente subordinada ao Ministério Público, enquanto titular da ação penal (cfr. o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição). Acresce que, na sua raiz, o dever de colaboração com a Administração tributária se justifica principal- mente por uma ideia diferente da de compensação ou contrapartida pelo exercício da liberdade de iniciativa económica ordenada a garantir a eficiência do mercado e a prevenção das suas falhas por via de uma regula- ção económica de interesse público, como é reconhecidamente o caso em matéria de defesa da concorrência e das demais atividades sujeitas a um quadro regulatório sectorial (cfr. os Acórdãos n. os 461/11 e 78/13, ambos citando Paulo de Sousa Mendes em “O procedimento sancionatório especial por infrações às regras da concorrência” in Regulação em Portugal: novos tempos, novo modelo , Almedina, Coimbra, 2007, p. 717; na mesma linha, mas apontando para uma mudança estrutural do tipo de intervenção económico-social do Estado, vide Nuno Brandão, Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal , citado, p. 46, que associa os deveres de colaboração à responsabilidade pública de garantia própria do Estado Garantidor). Na verdade, o pagamento dos impostos legítimos corresponde a um dever fundamental autónomo ime- diatamente decorrente da própria ideia de Estado como comunidade política (cfr. os artigos 103.º e 104.º da Constituição; nestes termos, vide Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 , 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 151). Como sustenta Casalta Nabais: «[O] imposto não pode ser encarado, nem como mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado. Com efeito, um estado para cumprir as suas tarefas, tem de socorrer-se de recursos ou meios a exigir dos seus cidadãos, constituindo justamente os impostos esses meios ou instrumentos de realização das tarefas estaduais. Por isso, a tributação não constitui, em si mesma, um objetivo (isto é, um objetivo originário ou primário) do Estado, mas sim o meio que possibilita a este cumprir os seus objetivos (originários ou primários), atualmente consubs- tanciados em tarefas de Estado de direito e de Estado social, ou seja, em tarefas de Estado de direito social. […] [O] dever de pagar impostos constitui um dever fundamental como qualquer outro, com todas as conse- quências que uma tal qualificação implica. Um dever fundamental, porém, que tem por destinatários, não todos os cidadãos de um Estado, mas apenas os fiscalmente capazes […]. Isto é, não há lugar a um qualquer (pretenso) direito fundamental de não pagar impostos […]. Há, isso sim, o dever de todos contribuírem, na medida da sua capacidade contributiva, para as despesas a realizar com as tarefas do Estado. Como membros da comunidade que
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