TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019

124 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Entende-se, na verdade, que a imposição da colaboração em causa se justifica por razões de interesse público e de eficiência, correspondendo a um quadro legal que é – ou deve ser – conhecido daqueles que interagem com a Administração, razão por que não estão em causa métodos proibidos de prova, designadamente pro- vas obtidas por via da perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de meios enganosos ou da ameaça com meio legalmente inadmissível [cfr. o artigo 126.º, n. os 1 e 2, alíneas a) e d) , do CPP]. Ainda assim, a lealdade na relação entre a Administração fiscalizadora e quem é fiscalizado impõe que o início de um eventual procedimento sancionatório seja devidamente sinalizado mediante uma comunicação expressa ou até por via da constituição como arguido, de modo a tornar manifesta a alteração do paradigma de relacionamento (Acórdão n.º 461/11): já não meras rotinas de controlo, mas uma investigação com vista ao apuramento de responsabilidades, a exigir e justificar outro cuidado por parte de quem é suspeito de ter cometido uma infração (vide, de novo, o Acórdão n.º 461/11; Nuno Brandão, Colaboração com as autorida- des reguladoras e dignidade penal , citado, pp. 40-41; e Paulo de Sousa Mendes, A utilização em processo penal das informações obtidas pelos reguladores dos mercados financeiros, citado, p. 592). Nada disto, porém, pode interferir com o conteúdo essencial do direito à não autoincriminação: o direito ao silêncio sobre factos que lhe sejam ou possam ser imputados a título de infração [cfr. o artigo 61.º, n.º 1, alínea d) , do CPP], que representa um limite intransponível aos referidos deveres de colaboração. Por isso, a recusa de declarações sobre tais factos é legítima. O eventual desrespeito deste “limite ao limite” tem como consequência a impossibilidade de consideração ou utilização no procedimento sancionatório das declarações prestadas, visto tratar-se de prova proibida. Refira-se, por fim, que esta abordagem é conciliável, quer com a “jurisprudência Orkem ” do Tribunal de Justiça da União Europeia (nesse sentido, vide o Acórdão n.º 461/11), quer com a jurisprudência do TEDH relativa aos direitos ao silêncio e à não autoincriminação, entendidos como dimensão do direito ao processo equitativo e exigência da presunção de inocência, tal como consagrados nos n. os 1 e 2 do artigo 6.º da Con- venção Europeia dos Direitos do Homem. Com efeito, na síntese do próprio TEDH, a coerção associada a deveres de colaboração, só por si, não implica necessária e automaticamente uma violação do artigo 6.º da Convenção, isto mesmo naqueles casos em que hipotética e remotamente seja possível a instauração de um procedimento sancionatório em que a informação solicitada pudesse vir a ser utilizada (cfr. os acórdãos de 8 de abril de 2004, Weh c . Áustria , Queixa n.º 38544/97, §§ 44 e 45, e de 29 de junho de 2007, O’Halloran and Francis c . Reino Unido , Queixas n. os 15808/02 e 25624/02, § 53). Para além dos critérios gerais a ponderar no caso concreto (cfr. o acórdão de 11 de julho de 2006, Jalloh c . Alemanha, Queixa n.º 54810/00, § 117, e O’Halloran and Francis c . Reino Unido , citado, § 55), importa considerar igualmente (cfr., por exemplo, Weh c . Áustria, citado, §§ 42 e 43): (i) os casos em que a coerção é exercida sobre alguém com vista a obter informação suscetível de incriminar essa pessoa num procedimento criminal em curso ou num procedimento criminal futuro mas que, por ser antecipável logo no momento em que o pedido de colaboração é feito, afeta substancialmente essa pessoa com uma carga acusatória (ou seja, nesses casos a instauração do procedimento sancionatório já não é meramente remota ou hipotética); e (ii) os casos referentes à utilização numa acusação criminal de informação incriminatória anteriormente obtida por via de meios coercivos fora de um procedimento criminal. Daí que, conforme referido no Acórdão n.º 340/13, o TEDH tenha sustentado «[n]os casos Funke v . França [acórdão de 25 de fevereiro de 1993], J . B . v . Suíça [acórdão de 3 de maio de 2001] e Shannon v . Reino Unido [acórdão de 4 de outubro de 2005], […] que a aplicação de sanções à falta de colaboração de contribuintes na entrega de documentos ou na prestação de informações, sobre os quais já recaía a suspeita da prática de ilícitos criminais violava o artigo 6.º da Conven- ção [ i. e .] no caso Saunders v . Reino Unido [acórdão de 17 de dezembro de 1996], na mesma linha, [tenha decidido] que violava o mesmo artigo 6.º da Convenção, a utilização em processo penal de prova recolhida em investigação não judicial, mediante a colaboração do arguido, obtida sob coerção da aplicação de sanções, quando sobre ele já recaíam suspeitas da prática do crime pelo qual viria a ser acusado» (itálicos adicionados).

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