TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 105.º Volume \ 2019
123 acórdão n.º 298/19 ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) ou à presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição). O princípio nemo tenetur se ipsum accusare é, na verdade, uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando, como mencionado, garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito pro- cessual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui o objeto do processo. 12. O mesmo princípio, todavia, não tem um caráter absoluto. Assim, tem-se admitido que o direito à não autoincriminação pode ser legalmente restringido, no pró- prio processo penal, em determinadas circunstâncias ( v . g ., a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido). No âmbito da regulação económica e social do Estado, são igualmente frequentes limitações a tal princípio traduzidas na imposição de deveres de colaboração, acompanhados da previsão de sanções em caso de incum- primento, tendo por objeto a prestação de informações, escritas e orais, e a disponibilização de documentos a autoridades administrativas com atribuições em matéria de fiscalização e de supervisão e com competências sancionatórias. Reconhece-se, nesses casos, que a garantia da capacidade funcional das autoridades administra- tivas em ordem à realização das respetivas atribuições exige uma lógica de continuidade de atuação: por razões de eficiência, a competência sancionatória funciona como condição de eficácia da própria função de fiscalização ou supervisão, sendo a colaboração dos particulares com as autoridades imposta no pressuposto de que existem “vasos comunicantes” entre as duas vertentes da atuação administrativa (vide, com referência à Autoridade da Concorrência e à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, respetivamente, os Acórdãos n. os 461/11 e 360/16; na doutrina, cfr., entre outros, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Poderes de super- visão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer), citados, pp. 17-27; Frederico de Lacerda da Costa Pinto, O Novo Regime dos Crimes e Contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários , Almedina, Coimbra, 2000, pp. 103 e seguintes; idem , “Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa em processos de contra-ordenação” (Parecer) in S upervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, citado, pp. 70-85; e Nuno Brandão, “Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 24, N.º 1 (jan.-mar., 2014), pp. 29 e seguintes, pp. 38 e 47-51). Nos termos constitucionalmente exigíveis (cfr. o artigo 18.º da Constituição), as mencionadas restrições devem estar previstas em lei prévia, de caráter geral e abstrato, respeitar o princípio da proporcionalidade e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional restringido (cfr., com especial relevância para o presente caso, os Acórdãos n. os 461/11, 340/13 e 360/16; na doutrina, vide, entre outros, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer), citado, pp. 44-45; Paulo de Sousa Mendes, “As garantias de defesa no processo sancionatório especial por práticas restritivas da concorrência confrontadas com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” in Revista de Concorrência e Regulação , Ano I, N.º 1 (jan.-mar, 2010), pp. 121 e seguintes, pp. 136-139; idem , “A utilização em processo penal das informações obtidas pelos regula- dores dos mercados financeiros” in Estudos em Homenagem ao Prof . Doutor Manuel da Costa Andrade , vol. II, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra , Coimbra, 2017, pp. 587 e seguintes, pp. 590- 594; e Nuno Brandão, “Colaboração com as autoridades reguladoras e dignidade penal”, citado, pp. 38-47). Deste modo, e uma vez respeitados tais requisitos, as informações prestadas pelo arguido e outros contri- butos probatórios, em especial a disponibilização de documentos, são exigíveis no âmbito de procedimentos de fiscalização de natureza administrativa ao abrigo dos mencionados deveres de cooperação, sendo o incum- primento destes últimos punível nos termos legalmente previstos. Acresce que, nas condições referidas, os mesmos contributos não constituem prova proibida, podendo ser considerados e valorados nos termos gerais (cfr. o artigo 125.º do CPP, segundo o qual «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»).
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